Carta dos editores
Vivemos um enorme desencaixe. As ‘nossas’ palavras e as ‘deles’ são como peças de um quebra-cabeças impossível, seus formatos determinados por desejos e medos irreconciliáveis. A situação é tornada grave porque tem o poder, agora, a vontade de homogeneizar, de forçar o fim do desencaixe, se necessário através da destruição das peças dissonantes.
Esta edição da Capivara celebra alguns dos inúmeros desencaixes — ou reencaixes — possíveis. A poesia, como a musa da desnaturalização do sentido das palavras, tem destaque. Em um poema de Ana Costa (“Paz e outros poemas”), a princípio a noite é ‘pantanal sem apologética’, por onde a narradora rasteja, surpreendida por seus habitantes; eventualmente, no entanto, faz desse lugar estranho algo a ser buscado. Já a visão do sol através do vidro canelado leva Schneider (Mateus Nascimento) ao Japão, lugar distante que lhe cede o modo de verdadeiramente enxergar o que há de mais cotidiano (“Conversações entre lá e aqui”).
Em “o futuro, uma miragem", Clarisse Lyra oferece uma descrição e afirmação corajosas de um desejo, espécie de canção utópica contra os rolos compressores de futuros à solta. Já Júlio César Bernardes põe a leitora de frente com o irreconciliável através de um conto (“O mistério do edifício cinza”) que atualiza o realismo mágico, mostrando-o distópico.
Na reportagem sobre a carreira de Andre Matos por Luiz Eduardo Freitas (“O maestro do power metal brasileiro”), somos apresentados à vida de um artista em constante desencaixe: como um cantor de heavy metal no Brasil, sua riqueza artística provinha das múltiplas e improváveis combinações de mundos que criava.
Por fim, no ensaio “E sonhamos como ovelhas elétricas: sobre humanidade, sexualidade e digitalidade”, Timothy Snyder (em tradução de Pedro Motta) confronta os desencaixes da polarização política na era dos algoritmos de redes sociais, reconfigurando o teste de Turing para explicar como as máquinas exercem mais poder sobre os humanos e suas paixões do que a ficção de Isaac Asimov foi capaz de prever.
Boa leitura! ∎
Antonio Kerstenetzky
Luiz Eduardo Freitas
Editores
André Martins
Clarisse Lyra
Daniel Mano
Hugo Salustiano
Nathalia Carneiro
Victor Fernandes
Conselho editorial
Beatriz Reis
Luiz Eduardo Freitas
Projeto gráfico
Ilustração:
Antonio Ricardo Filho