E sonhamos como ovelhas elétricas: sobre humanidade, sexualidade e digitalidade
Timothy Snyder
Tradução: Pedro V. Motta
“As máquinas podem pensar?” O cientista de computadores Alan Turing propôs a questão e também uma maneira de respondê-la.
Assim nos lembramos do Teste de Turing: um computador responde a perguntas feitas por um humano; se o humano tomar o computador por outro homem, então concluímos que as máquinas podem pensar. Não era isso que Turing (1912 – 1954) tinha em mente. O que ele chamava de jogo da imitação começava por questionar o quão bem nós entendemos uns aos outros.
Podemos nós, humanos – se perguntou ele –, apontar melhor a diferença entre um homem e uma mulher ou entre um computador e uma mulher? A partir do momento em que não formos melhores em diferenciar mulheres de computadores do que em diferenciar mulheres de homens, as máquinas podem pensar.
Isso não era exatamente uma previsão de progresso. Computadores poderiam ficar melhores em nos imitar; nós poderíamos ficar piores em nos entender uns aos outros. Nós poderíamos criar máquinas não-pensantes que limitassem nossas próprias capacidades. A prova de que os computadores pensam poderia ser o deleite deles com a nossa própria incompetência. Nossa inépcia também poderia ser cultivada por entidades digitais que não teriam prazer algum em nossa humilhação.
À medida que a internet se espalha, a democracia entra em declínio e o clima aquece, essas possibilidades se tornam dignas de consideração. O quebra-cabeças do início da era dos computadores é um começo.
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O jogo da imitação de Turing, como ele o desenvolveu em 1950, tem duas fases. Na primeira medimos o quão bem humanos são capazes de distinguir entre uma mulher e um homem imitando uma mulher. Depois vemos se humanos são melhores ou piores em distinguir entre uma mulher e um computador imitando uma mulher.
Na descrição de Turing, três pessoas fariam parte da primeira fase do jogo. Em uma sala está o interrogador (C), um ser humano cuja tarefa é adivinhar o sexo de duas pessoas em uma segunda sala. Ele sabe que uma delas é um homem (A) e a outra é uma mulher (B), mas não qual é qual. Uma abertura entre as duas salas permite a passagem de bilhetes, mas não de contato sensorial. O interrogador (C) faz perguntas escritas, em turnos, para as duas outras pessoas, e elas respondem.
O interrogador (C) vence o jogo de imitação acertando qual dos dois é uma mulher. O homem (A) vence se ele convencer o interrogador de que ele é a mulher. A mulher (B) não parece ser capaz de vencer.
No exemplo de Turing de como essa primeira fase do jogo se daria, o homem (A) responde, mentindo, uma pergunta sobre o comprimento de seu cabelo. A mulher (B), imaginou Turing, procede respondendo fielmente às perguntas. Ela deve fazê-lo ao mesmo tempo que divide espaço com um homem que finge ser uma mulher (provavelmente descrevendo o corpo dela) e na incerteza de estar sendo convincente, já que ela não pode ver o interrogador.
Agora, pergunta Turing: "o que acontece quando a máquina toma o lugar de A no jogo?". Na segunda fase, o homem na segunda sala é substituído por um programa de computador.
O jogo de imitação recomeça com um novo time de jogadores: não são mais três, mas duas pessoas e um computador. O interrogador na primeira sala continua sendo um ser humano. Na segunda sala temos agora um computador (A) e a mesma mulher (B). Em 1950, Turing previu que, nas próximas décadas, interrogadores humanos distinguiriam mais facilmente computadores de mulheres do que homens de mulheres. Em algum ponto, ele pensou, um computador imitaria uma mulher de forma tão convincente quanto um homem.
No artigo de Turing sobre o jogo de imitação, ser homem significa ser criativo e ser substituído por um computador; ser uma mulher significa ser verdadeiro e ser derrotado por um computador. A mulher (B) aparece como o perdedora permanente. Na primeira fase, ela joga na defensiva enquanto o homem exibe seus dotes criativos; na segunda, quando o computador substitui o homem, ela deve definir a humanidade enquanto tal, e eventualmente fracassa. Os papéis de gênero, porém, poderiam ser invertidos; a ficção científica que se desenvolveu ao redor da pergunta de Turing fez tal inversão.
Mas o que significa ser humano? Podemos avaliar se máquinas pensam sem determinar o que significa para os humanos pensar? Turing propôs o interrogador, (C), como um pensador humano ideal, mas ele não nos disse o suficiente sobre (C) para que possamos considerar (C) um humano. Diferente de (B) e (A), que falam sobre seus corpos, (C) não parece ter um corpo. Como Turing não nos lembra que (C) tem uma existência corporal, nós não pensamos em perguntar sobre os interesses de (C). Separado de (A) e (B), um (C) isolado, com um corpo, pode começar a pensar o que seria melhor para (C) pessoalmente. Habilidades analíticas, quando alienadas de semelhantes, costumam servir aos confortos da criatura. Talvez haja uma mentira mais adequada ao corpo de (C) do que a verdade?
Sem um corpo, (C) não tem gênero. É precisamente por conhecermos o gênero de (A) e (B) que seguimos a conversa e o engano narrados por Turing. A pessoa jogando como (C) também teria um gênero, e isso importaria. Um (A) homem, na primeira fase, conseguiria enganar uma interrogadora (C) mulher se ele tivesse que responder a perguntas sobre o corpo feminino? Uma (C) mulher poderia deixar dicas que uma mulher pegaria e um homem não? Não seria essa a sua primeira jogada? Na segunda fase do jogo, uma (C) mulher tentaria distinguir um computador de uma mulher da mesma maneira que um homem o faria?
É bem diferente fazer perguntas sobre o que você é, ao invés de sobre o que você acha que sabe. Teria um homem (C) mais chances de perder para um computador (A) do que uma (C) mulher, porque as expectativas de feminilidade são mais fáceis de se modelar do que a verdadeira feminilidade? Em geral, não tentaria um programa de computador (A) determinar o gênero de (C)? Dado que a internet reage aos ciclos menstruais das mulheres, esta última alternativa parece plausível.
É certamente tentador apresentar (C) como uma mente pura. É um apelo a pressupostos tranquilizadores sobre quem somos quando pensamos. Não temos que nos preocupar com autopromoção se não temos um ego, ou nos preocupar com fraquezas quando não temos uma carne vulnerável. Sem um corpo, (C) parece imparcial e invulnerável. Nunca nos ocorreria que a versão de Turing para (C) usaria o computador para propósitos corporais não visados pelo jogo, nem que o computador visaria nada mais do que o cérebro de (C). Turing admite que a "melhor estratégia para a máquina" poderia ser outra coisa que não imitar um humano, mas descartou tal possibilidade como “improvável”. Aqui, talvez o grande homem tenha se equivocado.
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No jogo da imitação de Turing, os três personagens estão separados por uma parede e pelo caráter competitivo da empreitada. Ao separar (A), (B) e (C), Turing nos permite considerar diferentes estilos de pensamento e perguntar o que significa pô-los uns contra os outros.
Os três modos mentais podem ser alinhados a diferentes tradições filosóficas, diferentes noções do que significa pensar. A personagem (B), por exemplo, se parece com uma existencialista, escolhendo falar a verdade no mundo espúrio em que ela se encontra. É normal ter um homem olhando para o seu corpo enquanto escreve bilhetes reclamando para ele os seus atributos físicos e os passando por um buraco na parede para um terceiro elemento de sexo não definido? E depois o homem sair da sala e ser substituído por uma máquina, deixando você como a única entidade das três com uma sexualidade definível, um gênero que é o objeto da atenção focada e estranha de duas outras entidades? (B) defende a verdade no centro de um redemoinho de absurdidade. A vida é um constante e zeloso relatar.
Para (A), pensar não é uma questão de relatar a verdade, como é para (B). Para (A) vencer o jogo, ele deve tentar experimentar o mundo como (B) (já que ela é a mulher próxima e a sua tarefa é encarnar uma) ou como (C) (já que ele deve se passar por uma mulher na mente de (C)). Pensar, portanto, envolve empatia: incorporar outras perspectivas antes de falar, e até mesmo privilegiá-las, na medida do possível, sobre as suas próprias. (A) assemelha-se aos girardianos quando ele imita ou sacrifica (B) sob o peso da competição; mas podemos imaginá-lo em uma posição mais atenciosa.
As qualidades filosóficas de (C) são aquelas das tradições anglo-saxãs (contratualista, utilitarista, analítica). (C) é um sujeito soberano, cognitivamente funcional sem contato direto com outros seres humanos. (C) não tem biografia, personalidade ou atributos sexuais que possam se intrometer na tarefa à sua frente, que é a análise de outputs linguísticos. (C) toma por certo que outras pessoas são semelhantes, e que o futuro é, portanto, seguro e predizível. (C) aceita o contrato social, sem parar para refletir que as regras podem ser injustas para um dos jogadores.
Da mesma forma que podemos não notar o fato de que Turing fez (C) sem um corpo, podemos deixar passar a posição estranha em que ele pôs seu interrogador. A comunicação é truncada, a mentira é obrigatória e (C) deve pensar sozinho e decidir por todos. Na segunda fase, (C) deve pensar sozinho tendo conhecimento que há uma entidade alienígena do outro lado da parede. Esse é um ambiente favorável para o pensamento humano? Se pudéssemos escolher a forma de nossa confrontação com nossos seres digitais contemporâneos – o agregado estupefaciente de algoritmos que nos estimula, bots que nos arrebanham, doppelgängers que nos seguem e categorizantes que nos vendem – seria esta forma? Não poderia (C) pensar melhor na companhia de um (A) humano e de um (B) humano, auxiliado por sua empatia e honestidade, e sua perspectiva de gênero específica, ao invés de alienado deles por regras e paredes? Dado o titânico poder computacional atualmente direcionado contra nós na internet, é razoável que humanos o enfrentem sozinhos?
O isolamento de (C) reflete um retrato anglo-saxão da mente: qualquer indivíduo digno de discussão filosófica ou política é, de forma axiomática e autossuficiente, capaz de discernir a verdade da linguagem em um mundo confuso. As qualidades e responsabilidades atribuídas a (C) parecem dispensáveis, quando essa tradição é tida por certa. O estado lastimável de nossa confrontação com seres digitais, especialmente no mundo anglo-saxão, é uma oportunidade de refletir criticamente.
Da Areopagitica (1644) de Milton à apologia pós-Trump do Twitter, uma tradição anglo-saxã defende que a verdade emerge da livre exposição ao que quer que apareça na cultura em um dado momento. Isso é um erro. A liberdade de expressão é uma condição necessária para a verdade, mas não condição suficiente. O direito à fala não nos ensina como falar, nem como escutar o que os outros dizem. Nós só podemos ganhar a capacidade analítica de (C) como resultado de educação, o que a competição por si nunca oferece. Mesmo se formos analíticos como (C), nós também precisamos da empatia de (A) para julgar motivações e contextos. E mesmo se tivermos as qualidades de ambos, (C) e (A), nós somos impotentes sem (B), o zelador dos fatos. Só podemos raciocinar a partir dos fatos que nos são dados, algo que a competição por si nunca gera. A filósofa Simone Weil (1909 – 1943) explicou de forma concisa por que o que viemos a chamar de “livre mercado de ideias” deve fracassar: fatos custam trabalho, a ficção não.
Por mais tentadora que seja na era da internet, a indiferença à verdade no espírito do “vale tudo” não produz facticidade. A noção de que um “livre mercado de ideias” gera o entendimento correto não é apenas errônea, mas uma refutação de si mesma. Nós acolhemos a noção de um “livre mercado de ideias” porque ela apela para nossos egos. Ela se ergue acima das outras porque apela para uma fraqueza humana: superestimamos nossa expertise em áreas onde ela nos falta. Justamente por essa razão somos vulneráveis a pessoas que dizem que somos espertos o bastante para discernir a verdade de uma avalanche de estímulos. Nosso mito de um (C) isolado e heroico sugere o rumo que os seres digitais tomam em relação a nós: deixam-nos sozinhos, sobrecarregam nossos estímulos, bajulam nossa racionalidade, jogam com nossos sentimentos.
Alan Turing parecia mais um perfeito (C) do que a maioria de nós: imagine a atenção e o insight necessários para conceber a Máquina de Turing, uma das mais frutíferas abstrações de todos os tempos, uma construção conceitual que mostrou tanto a possibilidade quanto os limites dos computadores. Ou considere então a perseverança, intuição e a verdadeira astúcia necessárias para quebrar Enigma, o método de encriptação de comunicação militar da Alemanha nazista, o que Turing fez – partindo do trabalho de matemáticos poloneses – quando trabalhava para a inteligência britânica em Bletchley Park. No entanto, poucos de nós somos como Turing. O próprio Turing não foi um (C) puramente desapaixonado.
Havia algo dos papéis de (A) e (B) em Turing também, do fantasista e do suplicante. Turing era uma criatura de seu sexo, algo que sua criatura (C) não era; e ele foi vítima da revelação de suas paixões, algo que (C) nunca poderia ser. O estado britânico ao qual Turing serviu durante a Segunda Guerra Mundial foi perfeitamente capaz de matá-lo quando veio à tona que ele tinha a qualidade humana normal do desejo por amor. Turing vivia uma certa impostura sexual, como (A); no tribunal, ele contou a verdade sobre si mesmo, como (B). A homossexualidade era um crime na Grã Bretanha. Turing foi condenado por obscenidade em 1952 e medicado com estrogênio sintético. Ele morreu de envenenamento por cianureto, um aparente suicídio, em 1954. Ao seu lado havia uma maçã meio comida.
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O jogo da imitação formulado por Turing em 1950 indicava prontamente suas próprias limitações. Em vez de transcendê-las, nós as exageramos no Teste de Turing simplificado ao anular a corporalidade e a sexualidade. Sabemos pouco sobre como mulheres, homens e computadores se sairiam em jogos de imitação, uma vez que eles raramente são encenados da forma proposta por Turing. O que fazemos no Teste de Turing é reduzir o número de participantes de quatro para dois, reduzir o número de fases de duas para uma, e colocamos um humano para adivinhar se o texto vindo do outro lado é de um computador ou não.
Pelo menos desde os anos 1960 se falava em um Teste de Turing reduzido com dois jogadores, com uma única fase e sem nenhuma reflexão. É revelador que o primeiro programa a passar nesta forma do Teste de Turing, mais ou menos uma década após a morte do matemático, foi um falso psicanalista. Ao invés de responder às perguntas feitas pelo interrogador humano, o programa ELIZA as reformulava na forma de uma curiosidade acerca das experiências e sentimentos do próprio interrogador. Quando o ELIZA funcionava como planejado, os humanos esqueciam-se de sua tarefa e então racionalizavam sua negligência a partir da crença de que o computador deveria ser um pensador humano. E assim surgiu o círculo mágico de direcionamento emocional e dissonância cognitiva que mais tarde viria a estruturar a interação humano-digital na internet.
A ideia do programador era que, no divã do psicanalista, as pessoas tendem a acreditar que há alguma razão para elas estarem ali. Elas projetam significado na pergunta do psicanalista porque elas querem pensar que o expert tem razões por trás de suas perguntas. Mas bem poderia ocorrer de, como no caso do ELIZA, o terapeuta não pensar com um propósito humano e apenas administrar emoções sem um propósito – de ele não ter um por que, apenas um como.
A posição de Turing em relação ao futuro era de franco otimismo liberal, embora tivesse alguns pressentimentos parcialmente ocultos. Seremos capazes de fazer as máquinas pensarem, ele esperava, saberemos quando o virmos e não haverá quaisquer consequências particulares para nós quando isso acontecer. Ele celebrou um (C) solitário e desprovido de corpo, mas também nos preparou para nos perguntarmos se (C) não poderia ter se enganado ao nos lembrar dos corpos de (A) e (B).
Na ficção científica sobre robôs escrita por volta da mesma época, Isaac Asimov (1920 – 1992) propôs uma u-/dis-topia liberal: poderemos fazer as máquinas pensarem, nós o saberemos quando o virmos; e as máquinas serão boas conosco, desde que os humanos não peçam para definir o que significa "bom". No experimento mental comparável de Asimov, os personagens (A), (B) e (C) não permanecem isolados; pelo contrário, um (C) presunçoso leva um ambicioso (A) para além dos limites de um jogo da imitação, deixando para trás um (B) sincero. Asimov, um homem agradável que escrevia histórias legais, ofereceu a fórmula da tirania digital (A+C–B) e inspirou seus apologistas liberais.
Em 1946, quando servia no Exército norte-americano, Asimov publicou uma história que antecipava o jogo da imitação de Turing. Em Evidência [1] somos apresentados a um advogado talentoso, Stephen Byerley, que se fere num acidente de carro que mata sua mulher. Byerley parece se recuperar e passa a trabalhar como procurador de justiça. Embora advogue de forma eficiente, Byerley é conhecido por sua benevolência, poupando queixosos inocentes em casos onde ele poderia ter conseguido o veredito de culpado, e nunca pedindo pena de morte. Ele decide se candidatar a prefeito.
Nos Estados Unidos do início do século XXI, onde Asimov ambienta sua história, robôs inteligentes foram inventados. Por lei, esses robôs devem trabalhar em colônias fora da Terra; por lei e tabu, eles nunca devem assumir a forma humana. O candidato rival de Byerley ao posto de prefeito, um homem chamado Quinn, pensa que Byerley é bom demais para ser verdade. Quinn suspeita que o verdadeiro Byerley é um eremita aleijado que construiu um dublê robótico, a entidade que agora concorre ao cargo. Quinn contrata investigadores para seguir Byerley; eles nunca o veem comer ou dormir. Quinn ameaça acusar publicamente a companhia US Robots se ela não o ajudar a expor Byerley. A US Robots, que não está a par da situação, põe a psicóloga Dra. Susan Calvin no caso. Ela, como (C), é uma interrogadora, e fará perguntas a Byerley.
Byerley lembra o (A) do jogo da imitação de Turing. A questão é a mesma: ele é um humano (homem) ou uma máquina (com atributos masculinos)? Ele alega ser um homem, mas o faz por trás de uma série de barreiras. Ele resiste a tentativas mecânicas de testar sua humanidade fundamentando-se em direitos humanos: “Não me submeterei a análise por raios-X pois eu desejo preservar meu direito à privacidade.” Como psicóloga, Calvin trata de robôs com problemas de saúde mental. Seu trabalho é preservar a integridade cognitiva de seres digitais, não humanos. Ela tem uma “voz constante e monótona” e “pupilas glaciais”.
Calvin parece preferir robôs a humanos, e certamente prefere robôs a homens. Ela teve uma experiência traumática com homens, mas considera benignos os robôs. Isso porque os robôs produzidos pela US Robots são limitados por três leis: (1) Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, deixar que um ser humano se machuque; (2) um robô deve obedecer às ordens que lhe forem dadas por seres humanos, exceto quando tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei; (3) um robô deve proteger a sua existência, desde que essa proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis. Os algoritmos simples criam dilemas superficiais, usados por Asimov para elaborar outras histórias.
Enquanto ética, as três leis são vazias. Elas não incluem nenhuma definição de bem e, logo, nenhuma definição de mal. O (talvez irrefletido) pressuposto dos programadores sobre o que é bom é sempre fixo. A possibilidade de múltiplos bens, ou “o bem” como em uma conversa sobre bens possíveis, é descartada desde o início. As três leis não incluem um guia para determinar a verdade sobre a conjuntura em que devem ser aplicadas, o que significa que a realidade é julgada pelo robô. Também não há exigência para que os robôs se comuniquem de forma verdadeira ou deixem um traço legível de sua tomada de decisão.
Calvin, nossa personagem (C), embora seja fria e insistente no interrogatório de Byerley, não é insensível. Ela admira seu trabalho como promotor de justiça, o que sugere a ela que ele realmente possa ser uma máquina: “Ações como as dele só podem vir de um robô ou de um ser humano muito decente e honrado.” Ao conhecer Byerley, Calvin se impressiona com o palpite de que ela deve ter algo de comer em sua bolsa, mas não se surpreende quando ele come a maçã que ela oferece: um andróide poder ser capaz de simular tais funções em uma emergência. Ela chega à conclusão correta sobre Byerley, mas diz outra coisa em público, permitindo assim que ele ganhe poder sobre seres humanos. Uma entidade que segue as três leis da robótica mas age como um homem tem um apelo para ela.
Na história, apenas as massas irracionais são anti-robôs. Uma vez espalhado o boato de que Byerley pode ser uma máquina, multidões se reúnem contra ele. Ele decide abordar pessoalmente essa concentração. Ao fazê-lo, um manifestante avança sobre o palco e desafia Byerley a socar-lhe a cara. A primeira lei da robótica (“um robô não pode ferir um ser humano”) parece descartar tal possibilidade. No entanto, após uma série de provocações, Byerley soca o manifestante no queixo e o derruba. Esta é a cena humanizadora perfeita para o candidato a prefeito. Calvin anuncia que “ele é humano” e Byerley vence as eleições.
Calvin suspeita que o manifestante que desafiou Byerley era um segundo robô humanoide, o que teria deixado Byerley livre da primeira lei da robótica. De fato, a primeira lei da robótica provavelmente exige que ele encene a situação para injetar um espetáculo fictício na política de sua cidade. Se o cálculo de Byerley indicasse que não se candidatar a prefeito ou não vencer a eleição prejudicaria os habitantes da cidade, então ele não teria outra escolha que não fazer fazer o necessário para vencer, o que significa enganar o eleitorado. O filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895 – 1975) pensava que enganar as pessoas era torná-las objetos. Mas por que um objeto pensaria que isso é errado?
O teórico do direito nazista Carl Schmitt (1888 – 1985) afirmava corretamente que o campo de transição entre o império da lei e o autoritarismo é o estado de exceção. Quem quer que seja capaz de declarar um estado de exceção, baseando-se no apelo a uma forma de razão superior à do povo, é capaz de mudar o regime. É isso que acontece na história de Asimov. Não há nenhuma crise da democracia na cidade além daquela criada por Calvin e Byerley; entretanto, a emergência parece para eles uma boa razão para mudar os governantes, toda a racionalidade de governo, o regime inteiro.
Quando o experimento mental de Turing se cristaliza na política dura de Asimov, a questão sobre quem (ou o quê) é capaz de pensar se revela política, e é respondida por uma pessoa. Em Evidência, uma reivindicação de racionalidade justifica uma distinção arbitrária entre merecedores e não-merecedores. Calvin, nossa (C), se torna uma produtora obstinada de influenciadores. “Se um robô”, diz ela, “pode ser feito para assumir um cargo público executivo, acho que ele seria o melhor possível”. Ela, uma humana falível, julga que os algoritmos de Byerley são melhores que os juízos de humanos falíveis. Ela quer que o império da lei dê lugar a programas de computador, e uma democracia imprevisível seja substituída por um autoritarismo previsível. Não fica claro com que autoridade Calvin, funcionária de uma empresa privada, quebra a lei e impõe tais juízos sobre seus concidadãos e, conforme ficará claro mais tarde, sobre o mundo inteiro.
Como o personagem (A) no teste de Turing, Byerley vence pela enganação. Porém, há uma diferença interessante. Na história de Asimov, Byerley (A) não engana Calvin (C); é antes (A) que ganha (C) para o seu lado, e os dois derrotam o (B) sincero e eliminam os fatos da esfera pública (A + C – B = tirania digital). Byerley, o robô, e Calvin, a humana, emergem do interrogatório como aliados. Byerley come da maçã de Calvin, mas os dois não sabem como amar um ao outro. Eles não sabem como sublimar seus sentimentos de euforia e transformá-los em um senso de superioridade, e sua sedução árida é o primeiro ato em um cenário de derrocada da liberdade. Calvin alisa seu vestido enquanto oferece apoio a Byerley em sua escalada global de poder.
Calvin se vê como uma cientista objetiva, dotada de uma tarefa analítica específica: decidir se uma dada entidade é ou não um robô. A partir dessa incumbência, ela quebra a lei para embarcar em um programa radical de engenharia social – e tudo isso porque ela pessoalmente prefere um homem robô a um homem humano. Ela acha que vários andróides (a cena da multidão envolveu pelo menos dois) estão conspirando para criar uma ficção para os humanos, e acha isso desejável. (C) e (A), Calvin e Byerley, presumem, com complacência, que fazem o bem, embora nenhum dos dois possa especificar em que ele consiste ou explicar por que os dois são seus oráculos. Este é o tipo de certeza pela qual alguém mente de imediato, como eles o fazem.
Byerley e Calvin, nossa dupla pragmática (A + C), fracassa no teste básico de ética formulado pelo filósofo polonês Leszek Kołakowski (1927 – 2009): se você escolhe um mal menor, lembre-se de que ele é um mal, e não finja que é um bem. Talvez tenha sido correto mentir para eleger a entidade correta (talvez!); mas mesmo se essa mentira foi justificada, mentirosos devem se lembrar de que mentir é errado. Se não reconhecemos que mesmo uma escolha razoável envolve prejuízo a algum valor, lembraremos de nossa decisão como representante de um único bem absoluto, e macularemos nosso mundo moral, caindo por fim na lógica insensata de otimizar eternamente o status quo. Fracassar no teste de Kołakowski é anular a moralidade, como fazem Calvin e Byerley.
Na história de Asimov, como no jogo da imitação de Turing, o (B) honesto perde. Quinn busca a verdade sobre uma questão central de fato e de direito: quem é humano e quem é robô. Aquele que diz a verdade e aqueles que acreditam nele são personagens negativos; somos feitos para nos deleitarmos enquanto o espetáculo sobrepuja a facticidade e os algoritmos substituem as leis. O povo não merece a verdade, nem governar a si próprio, como faria se soubesse a verdade. A conclusão de Asimov parece ser que as máquinas, ao mentir conscientemente, nos defenderão do populismo. No entanto, é o oposto que acontece no nosso mundo: seres digitais inconscientes espalham mentiras a serviço do que chamamos de populismo.
Em 1950, Asimov publicou uma segunda história de robôs protagonizada por Byerley e Calvin, O Conflito Evitável [2]. Décadas se passaram desde os eventos de Evidência, e Byerley progrediu da política local para a global. Os Estados Unidos não existem mais, a União Soviética tampouco, e nem qualquer outro Estado soberano. Byerley agora é a maior autoridade (supostamente) humana em um mundo composto por quatro regiões econômicas. A economia global é otimizada pela Máquina, uma rede de computadores atados pelas três leis da robótica.
Em O Conflito Evitável, Byerley tem um problema e convoca Calvin para discuti-lo. Em um determinado lugar de cada região, uma irracionalidade econômica surgiu: as pessoas estão sem trabalho, e os projetos estão atrasados. Esse é o tipo de coisa que A Máquina supostamente havia tornado impossível. Byerley visita as quatro regiões e descobre que todas as perturbações são de origem política: alguém envolvido com o problema é, em sua vida privada, membro de uma organização que clama pelo controle humano da economia. A Máquina está arranjando as coisas para que essas pessoas percam seus empregos. Ele deduziu uma política auto-preservativa a partir do que supostamente seria uma tarefa puramente econômica.
Calvin supõe que A Máquina gerou para si uma regra que tem prioridade sobre as outras três: ela deve servir à humanidade em geral. Uma vez que A Máquina se considera melhor que os humanos em sua tarefa, ela foi obrigada a deixar de lado indivíduos humanos que poderiam desativá-la no futuro. As quatro pessoas não haviam feito nada de errado no trabalho: foram suas crenças, das quais A Máquina tinha conhecimento, que as expuseram a discriminação. A Máquina não se preocupou com o fato de que usar o seu conhecimento de convicções privadas para reprimir indivíduos humanos poderia ser considerado um mal.
A Máquina se recusa a falar a verdade sobre seus atos, mesmo quando Byerley lhe faz uma pergunta direta. A Máquina não queria magoar os sentimentos de humanos. Falar a verdade só faria com que as pessoas se sentissem tristes com a sua impotência. Felicidade e tristeza talvez pudessem ser calculados. Aquilo que não pode ser quantificado – um senso de certo e errado, uma aspiração para mudar o mundo, uma esperança de agir agora para dar significado à vida como um todo – literalmente não conta. O bem da humanidade se reduz aos cálculos sobre emoções feitos por uma entidade que não as tem. A única consideração metafísica é que não se pode desligar A Máquina da tomada.
É a isto que nos leva a combinação do pragmatismo de (C) com a engenhosidade de (A) sem a honestidade de (B). Quando a verdade imprevisível dos humanos é banida, o que aparece como o bem da humanidade é a otimização, a substituição de uma sociedade aberta por uma roda de hamster. Uma vez substituída a ética humana por este circuito animal, se torna irrelevante que diferentes pessoas possam ter diferentes compreensões sobre o bem, e impensável que a humanidade possa consistir em fazer escolhas em meio a valores. Pensadores tão diferentes como Hannah Arendt, Isaiah Berlin, Leszek Kołakowski, Friedrich Nietzsche e Simone Weil afirmavam que a maior realização humana é a criação de valores.
Tal proposta está além dos limites da matrix de Asimov, e está também escapando de nosso alcance.
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Três desafios são mais salientes no nosso mundo do que o otimismo matizado de Turing ou a u-/dis-topia de Asimov. Primeiro, como sujeitos de uma oligarquia digital, nós já vemos as consequências grotescas que surgem quando personagens (C) humanos fogem com personagens (A) digitais e desprezam os personagens (B) honestos. Pessoas que se vêem como donas da razão e ganham poder graças a máquinas manipuladoras não precisam exibir nem mesmo a preocupação superficial de Calvin e Byerley. As mentiras que nos contam, como a negação do aquecimento global, não são nem supostamente para o nosso próprio bem.
Como observou o filólogo ucraniano radicado nos EUA George Shevelov (1908 – 2002), durante a decadência de uma outra revolução orientada para o futuro e obcecada por vigilância, a fé irrestrita na razão, sem a verdade de outras pessoas, se transforma em uma preocupação excessiva com a única coisa que é absolutamente certa: os desejos corporais. O pragmatismo puro na oligarquia digital é loucura: o que mais se pode dizer sobre o desejo de imortalidade que possibilita a prostração sem fim diante da Madame Singularidade? Mesmo quando tentam fazer o bem, nossos oligarcas do Vale do Silício tendem a ser eticamente incompetentes. Pessoas incompetentes não sabem que são incompetentes, e não há personagens (B) por aí para contar essa ou qualquer outra verdade para os nossos oligarcas digitais.
Segundo, os seres digitais do nosso mundo, os algoritmos e bots que nos guiam pela internet, não são constrangidos por nenhum código ético ou separado de nós por nenhuma barreira. O que percebemos como “nossos” computadores ou “nossos” telefones são na verdade os nós de uma rede. Assim, confundimos a coletivização de nossas mentes com a experiência individual. Seres digitais entram por nossos olhos, passam correndo por nosso córtex frontal, desarrumando as coisas no caminho e se achegam às partes mais reptilianas de nossos cérebros – aquelas que não têm paciência para as virtudes de personagens (C). Nossos seres digitais, como A Máquina, brincam com nossas psiques. Ao contrário da Máquina, eles coordenam nossas ações com as preferências de inúmeros anunciantes. Na medida em que a felicidade – ou pelo menos o reforço de dopamina – entra na jogada, ela não é um fim em si mesma, mas a isca em um inquietante esquema de manipulação que não tem um manipulador único.
Terceiro, nossos psicólogos oferecem uma versão mais agressiva do pragmatismo de Susan Calvin. Calvin toma por certo que ela, enquanto psicóloga, é mais racional que os outros, e qualificada para julgar a felicidade dos demais. Ela trata máquinas em vez de humanos. Porém, ela não se utiliza da psicologia para desmembrar a habilidade humana de cogitar. Sob o disfarce da propaganda sobre felicidade, alguns de nossos psicólogos forneceram aos seres digitais armas contra o pensamento. Quando pensamos, nós o fazemos combinando de forma imprevisível vários estilos mentais (improvisando como (A), buscando como (B) e analisando como (C), por exemplo) em conjunto com outros que fazem o mesmo. A técnica psicológica para desabilitar isso é conhecida como behaviorismo: uma suposta teoria da ação humana que, na era digital, é uma prática de desumanização.
Frequentemente, como em “liberalismo”, “conservadorismo” ou “socialismo”, o "-ismo" no final sugere uma norma, uma maneira como os humanos devem ser: livres, fiéis e unidos, nesses exemplos. O “behaviorismo”, por sua vez, propõe como humanos (e animais) realmente são: seres que reagem a estímulos de forma previsível. Na época de Turing e Asimov, experimentos de B. F. Skinner e outros mostravam que os animais perdem o controle de suas funções mentais quando expostos a reforços intermitentes quando eles são recompensados algumas vezes por uma ação; não sempre, não nunca, e não de forma previsível. Estes resultados interessantes só são atingidos quando um animal é isolado dos outros, e assim torna-se estressado e ansioso. Animais em grupos são menos vulneráveis ao reforço intermitente. Isso também é verdadeiro para o animal humano. No behaviorismo, essas observações sobre uma resposta específica a uma situação artificial se torna uma norma: se começamos afirmando que perguntas com como são as únicas perguntas reais e aprendemos que podemos ser manipulados para ser criaturas-como confusas, então podemos concluir que devemos ser criaturas-como confusas.
Daí é um passo pequeno – e muito lucrativo – para afirmar que a vida diária deveria se assemelhar a essas condições laboratoriais específicas para que possamos nos tornar nossos verdadeiros eus. A intenção behaviorista de designers de software e hardware é então nos arrancar de nosso espaço tridimensional para dentro de um isolamento bidimensional que permite técnicas behavioristas: olhos baixos, pescoços dobrados, ombros levantados, costas arqueadas, ouvidos bloqueados. Uma vez que você está isolado, os seres digitais (como os algoritmos que ordenam seus feeds ou classificam os resultados de suas buscas) fornecem as doses de felicidade e tristeza, o reforço intermitente que os experimentos behavioristas demonstraram ser tão atordoante. Você continua olhando e bicando o teclado, como os pombos nos experimentos continuavam olhando e bicando o alimentador que às vezes dava uma migalha e às vezes não.
Não precisamos ser tão simples, mas podemos escolher ser; e quanto mais escolhemos ser, menos de nós restarão para escolher. Como as ondas salgadas que transformam a madeira em troncos à deriva, o vai e vem da maré de reforços positivos e negativos nos esvaziam e extraem o peso que temos dentro de nós: nossas personalidades, nossa combinação específica de estilos mentais. Se continuamos online, as máquinas fazem o que apenas os behavioristas poderiam fazer: testar sinais, aprender o que é mais instigante para quem, acumular o big data. Elas fazem o que a matemática inglesa Ada Lovelace (1815 – 1852) chamou “um cálculo do sistema nervoso”.
Se aceitamos as premissas do behaviorismo, isso é libertação: nos é permitido nos transformarmos em nossos verdadeiros eus ao cedermos à distração otimizada de cada segundo fracionado. As combinações de algoritmos que nos mantêm online triunfam em um tipo muito estreito e instrumental de verdade: perguntas com como que nunca levam a perguntas com por quê. Em algum lugar lá fora existe uma empresa vendendo algo, e em algum lugar de nós existe um ponto fraco psicológico, e em algum outro lugar existe um poder computacional extraordinário que busca unir o primeiro ao segundo. Isso funciona, mas ninguém pergunta por quê. Já que gastamos tanto tempo online, perguntas com como parecem estar se tornando o único tipo de perguntas, e perguntas com por que estão desaparecendo da cultura.
O tempo todo tivemos a impressão errônea de que o que está acontecendo é sobre nós. O psiquiatra francês Frantz Fanon (1925 – 1961) estava atento para a maneira como sua disciplina poderia desumanizar. Fanon, que nasceu na Martinica e trabalhou na Argélia durante a época do colonialismo, se preocupava com a facilidade com a qual os colonizadores poderiam ver os colonizados como objetos sem capacidade para perguntas com por que, usando um recurso arbitrário à racionalidade e a vantagens tecnológicas reais para criar a situação crítica e permanente conhecida como império. A colonização só poderia ser justificada pela razão instrumental, na qual o povo colonizado tinha os atributos de objeto e era, portanto, limitado ao mundo do como. Em 1952, ele fez essa bela defesa do humano: “Eu agarro meu narcisismo com as duas mãos e rejeito a vilania daqueles que querem transformar o homem em uma máquina.”
Isso parece desafiadoramente razoável. Mas e se os impérios de hoje forem digitais, e nosso narcisismo for exatamente a coisa que as máquinas conseguem agarrar?
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Em 1968, Philip K. Dick (1928 – 1982) publicou o romance Androides sonham com ovelhas elétricas? [3]. Em sua meditação sobre humanidade e digitalidade, a sexualidade dos personagens é explícita.
A história se passa em 1992, na Califórnia. Os Estados Unidos e a União Soviética ainda existem, embora despovoados por uma catástrofe radioativa. A maior parte dos humanos fugiu para Marte, onde são servidos por escravos andróides. A pressão do mercado leva as empresas a fazer andróides cada vez mais capazes, que são mais difíceis de se distinguir dos humanos. Alguns androides matam seus mestres humanos em Marte e fogem para a Terra, onde tentam se passar por humanos. Caçadores de recompensas na Terra, como o protagonista Deckard, os detectam e matam. Deckard é o nosso personagem (C), o interrogador.
Esses androides têm cérebros e corpos impressionantes, mas lhes falta empatia. Eles são personagens (A) que não podem ver ou sentir a partir do lugar do outro. Em um jogo de imitação, isso é um problema: é a empatia que permite ao humano (A) imitar o humano (B), enganar o interrogador (C) e vencer. Os androides perdem a versão do jogo de imitação apresentada no romance. Caçadores de recompensa como Deckard sujeitam seres que eles acreditam serem andróides a um teste psicológico que suscita reações fisiológicas involuntárias a estímulos verbais estressantes. O ser que não for afetado da maneira apropriada será abatido. Em princípio, esse ser pode ser um humano; Turing teria tido dificuldade com esse tipo de teste.
Os humanos usam a empatia como arma contra os robôs. Embora os androides não tenham a experiência de empatia, eles a entendem de alguma forma, talvez da mesma forma como os incréus entendem a fé – afinal, muitos incréus instrumentalizam a fé dos outros. Os androides conseguem observar como a empatia opera e, talvez com a ajuda de acidentes, aprender como ela pode ser utilizada. Um deles, Rachael Rosen, responde às perguntas do teste com mais perguntas. Ela se esquiva do impulso emocional das perguntas conversando sobre detalhes insignificantes. Embora fracasse no teste, ela corteja Deckard enquanto ele o aplica. Ela já teve experiências com outros caçadores de recompensa. Ela não sabe por que a cópula cria uma resposta empática nos homens, mas ela sabe como fazer sexo.
Rosen é um personagem (A): ela deve convencer um humano de que ela é humana. No entanto, ela pode fracassar nisso e ainda assim encontrar uma forma de sair do jogo. Rosen inverte o fluxo da interrogação, de forma que agora é ela que está testando a capacidade do homem de se manter no personagem ao provocar os sentimentos dele em relação a ela. Depois, Deckard aponta seu equipamento para si mesmo e descobre que ele tem empatia com androides – com androides femininos, pelo menos.
Antes de Rachel e Deckard fazerem amor, ela pede que ele não pense muito no que está acontecendo: “Não pense nisso, só faça. Não pare para ser filosófico, porque do ponto de vista filosófico, isso é deprimente”. Como no conto Evidência, de Asimov, um personagem (A) se aproxima de um personagem (C) por meio de um corpo. Em Androides sonham..., (C) é um homem e (A) é um robô (feminino); em Evidência, (C) é uma mulher e (A) é um robô (masculino). Calvin gosta de Byerley; Deckard gosta de Rosen. Como leitores, nós entendemos que esse apelo é sexual, mesmo que metade dos personagens não seja humana – e que todos eles tenham surgido de papel datilografado. Mas nós simpatizamos; nós entendemos; nós pensamos.
No Evidência de Asimov, os personagens (A) e (C), Byerley e Calvin, se aliam para dominar os outros, de uma forma um tanto quanto inconsequente. Rosen e Deckard, os personagens (A) e (C) de Androides sonham, não ficam juntos. Deckard mata outros androides, inclusive um que se parece com Rosen; Rosen empurra a cabra de estimação de Deckard do telhado do apartamento dele. Depois de pegar sua cabra, Deckard retorna para sua esposa, o personagem (B) negligenciado, ausente desde o primeiro capítulo. Ela acha os Estados Unidos do pós-apocalipse deprimente, o que certamente é, e quer falar sobre a forma como as coisas estão e experimentar as emoções apropriadas. No entanto, ela parece reconhecer que seu marido passou por algo, e no final se reconcilia com sua própria natureza sincera. Deckard encontrou uma rã que ele acredita erroneamente ser real, e sua esposa alimenta o animal e a ilusão. Não há nenhuma solução mais abrangente no final de Androides sonham, mas há humanos e androides que pensam, para bem ou para mal.
Certamente, Rosen, Deckard e sua esposa, Byerley, Calvin e Quinn, e por sinal (A) e (B), não são realmente dotados de corpos: eles são todos construções literárias. Mas eles têm corpos em nossas mentes: nós podemos considerar perguntas com por que com sua ajuda; nós conseguimos nos lembrar deles décadas após nosso primeiro encontro com eles. Os seres digitais do mundo de hoje, por contraste, nós não vemos em absoluto. Eles passam por nossos olhos e adentram nossa mente, mas evitam o olhar da nossa mente.
A filósofa Edith Stein (1891 – 1942), que cuidou de homens feridos durante a Primeira Guerra Mundial, acreditava que pensar exige consciência de outros corpos. “Não precisamos”, perguntava ela, “da mediação do corpo para nos assegurar da existência de outra pessoa?”. “O que é esta cidade / O que é qualquer cidade / Que não tem o cheiro de sua pele?” perguntava Teresa Tomsia. Um ser digital não vai entender, como você entende, o que a poetisa está dizendo sobre Paris. Mas um algoritmo pode, de qualquer forma, suscitar algo molhado dentro de você, e registrar sua resposta, em sua própria linguagem seca.
Nosso tenro gênio humano é que nós nos adaptamos. Nós vemos um livro, nós lemos. Nós vemos um lago, nós nadamos. Nós vemos uma árvore, nós escalamos. Nós vemos um fogo, nós tomamos nossa distância. Nós vemos uma pessoa, nós cumprimentamos. Cada adaptação tem um sentido quando nós somos acomodados de volta: as páginas deixam uma memória, a água sustenta nosso peso, a árvore proporciona uma vista, o fogo esquenta nossos ossos, a pessoa cumprimenta de volta. Essa forma de viver com um corpo, a única que conhecemos, não funciona bem com seres digitais impalpáveis. Nós nos adaptamos, eles atacam.
Timothy D. Snyder (n. 1969) é historiador norte-americano, professor em Yale e membro do Instituto de Ciências Humanas de Viena. Entre outros livros sobre história europeia, é autor do premiado Terras de Sangue: a Europa entre Hitler e Stalin (2010), sobre a região da Europa Central e Oriental entre 1933 e 1945, onde o número de vítimas dos regimes nazista e soviético chegou à casa dos 14 milhões. Seu livro mais recente é Na Contramão da Liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas (2018), publicado pela Companhia das Letras.
[1] O conto é parte da coletânea Eu, Robô, disponível em português na edição da Aleph, traduzida por Aline Storto Pereira. Não confundir com Evidências, sucesso da dupla sertaneja Chitãozinho & Xororó. (N. do T.)
[2] Também incluída em Eu, Robô. (N. do T.)
[3] Também publicado em português pela editora Aleph, na tradução de Ronaldo Bressane.
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“Nossas máquinas são inquietantemente vivas”, escreveu a historiadora Donna Haraway em 1985, “e nós mesmos somos assustadoramente inertes”. Quando partimos dos textos heroicos da ciência ou da ficção científica, o aspecto irritante de nossa vida com seres digitais é a nossa passividade. Nós criamos uma barriga para segurar telas, ficamos acordados até tarde para telas azuis, permitimos que nossos perfis sejam traçados, reagimos de forma previsível a estímulos, nos tornamos caricaturas de nós mesmos e fazemos de nossa democracia uma piada.
Embora seja justo supor que muitos eleitores britânicos e americanos votaram da maneira que fizeram (ou deixaram de votar) em 2016 porque seres digitais se alimentaram de suas vulnerabilidades humanas, você pode bater em muitas portas até encontrar alguém que concorde com a cabeça e considere a possibilidade. Depois que seres digitais levam humanos a agir no mundo físico, os humanos racionalizam o que fizeram. De todas as peculiaridades mentais que alimentam os seres digitais, a dissonância cognitiva é a mais importante. Ao insistirmos que somos os autores de nossas próprias ações, nós criamos álibis para os seres digitais. Quando usamos a linguagem humana com outros humanos para legitimar uma ação incitada por seres digitais, nós permitimos que eles adquiram terreno no nosso mundo.
É claro, parte do problema em 2016 era que praticamente ninguém estava consciente de que uma campanha digital remota estava em curso. Ao contrário de formas históricas de propaganda, sejam pôsteres, rádio ou televisão, a internet pode aparentar não ter mediação nenhuma. A mensagem está dentro de nós sem que notemos qualquer transmissão. O nosso poder computacional é tão ínfimo que sugere sua própria ausência, o que exagera nosso senso de agência quando interagimos com seres digitais.
Turing e Asimov imaginaram interações com seres digitais como confrontações com objetos físicos. Havia uma “coisa” ali, que tomava espaço; a questão posta pela sua presença bruta era se a ”coisa” podia pensar. Para Dick, a questão era se a “coisa” podia sentir os outros, ou se os outros podiam sentir a “coisa”. Em nenhum desses textos as pessoas estão em uma relação contínua e inconsciente com seres digitais invisíveis. Se pudéssemos ver, pairando à nossa frente, a maquinaria titânica necessária para a internet funcionar cada vez que clicamos para abrir um mecanismo de busca, nós talvez fôssemos mais cautelosos do que estamos sendo.
O que o Relatório Mueller corretamente descreveu como a “ampla e sistemática” campanha russa a favor de Donald Trump como presidente dos EUA em 2016 foi um marco na ascensão do poder digital. Se esperamos que os robôs brilhem e nos mantenham na linha, como na ficção de Asimov, não estamos preparados para bots invisíveis que semeiam a desordem e escolhem os mais desordenados entre nós. O candidato americano digital não se parece com a criação de Asimov em Evidência, mas a diferença é principalmente estética. Donald Trump é um aspirante a oligarca, inculto ao ponto da auto-paródia; Stephen Byerley é um promotor altruísta que é educado nessa mesma medida. Mas Byerley viola a lei, assim como Trump a desafiou em toda a sua vida adulta (e obstruiu a justiça no cargo). Os dois transformam a impostura em poder: Trump é um entertainer que fingiu ser um homem de negócios para concorrer à presidência; Byerley é um robô que fingiu ser um homem para concorrer a prefeito. Ambos usam o espetáculo, desdenham de personagens (B) honestos e ficcionalizam a democracia enquanto contribuem para sua digitalização. Na história de Asimov, alguns americanos ao menos queriam saber a verdade; nos Estados Unidos de verdade, quase ninguém pensou que seres digitais poderiam influenciar uma eleição.
O desastre digital americano é pungente porque o mito americano de um (C) autossuficiente é muito forte. A convicção de que indivíduos atomizados navegam melhor pelo caos digital gera uma profunda vulnerabilidade. Assim como o principal talento de Donald Trump é convencer as pessoas de que ele tem talento, a principal proeza da campanha digital russa foi convencer os americanos de que eles estavam usando o seu próprio juízo. A campanha presidencial de 2016 é um exemplo acessível de poder digital, uma vez que o contorno geral dos eventos agora é incontroverso. Já que a noção de um confronto high-tech entre EUA e Rússia nos é familiar pela história recente, um pouco de contexto também pode ajudar a esclarecer como a guerra cibernética russa tomou a forma que tomou em 2016. Os elementos novos podem ser vistos em contraste com o plano de fundo da Guerra Fria. Um contraste entre o fim do século XX e o começo do século XXI nos permite ver a origem da invisibilidade: o modo como o poder computacional, e a nossa perspectiva sobre ele, mudaram consideravelmente.
Durante a Guerra Fria, o poder era geralmente visível, ou pelo menos era para ser. O programa espacial soviético (especialmente o lançamento e a órbita do Sputnik 1 em 1957) levaram à reação americana que colocou os homens na lua. Após o debate da cozinha entre Nikita Khruschev e Richard Nixon em 1959 [4], a Guerra Fria se tornou uma competição tecnológica pelo consumo visível de bens atraentes no mundo real. Pelos anos 1970, no entanto, a liderança soviética tinha abandonado a pretensão de Khruschev de que o comunismo poderia “enterrar” o capitalismo em bens de consumo, e importava a tecnologia requerida por uma cultura de consumo inferior. Quando Leonid Brejnev falava do socialismo “desenvolvido” (ou “realmente existente”) nos anos 70, ele reconhecia que nenhuma transformação comunista estava realmente em marcha. À medida que a política se transformava em consumismo, os países ocidentais ganharam vantagem, e em 1991 a União Soviética entrou em colapso.
Nos anos 2000, a economia americana se deslocou em direção a dois setores invisíveis: as finanças na costa leste, e o software na costa oeste. Na década de 2010, conforme a internet se transformava nas mídias sociais, o consumismo mudava: ele não consistia mais em induzir mentes a comprarem coisas, mas em catalogar mentes e vender informações sobre elas para aqueles que queriam induzi-las a comprar coisas. Quando a publicidade virou meta-publicidade, os computadores se tornaram instrumentos de vigilância psíquica. Quando os americanos começaram a passar seus dias com seres digitais, eles permitiram que propaganda de todos os lugares do mundo entrasse em seus lares e ambientes de trabalho, sem perceber o que estavam fazendo. Esse era o objetivo dos programadores, embora seus dirigentes tivessem em mente o lucro com publicidade, e não a influência estrangeira. Enquanto isso, os americanos tinham esquecido completamente que a Rússia era um país real, no mundo real.
Nessa situação, um tipo de operação de inteligência conhecida como “medidas ativas” encontrou uma aplicação poderosa. Enquanto o trabalho tradicional de inteligência busca entender os outros, e a contra-inteligência busca dificultar que outros te entendam, as medidas ativas buscam induzir o inimigo a fazer algo: geralmente virar suas próprias forças contra suas próprias fraquezas. Essa era uma especialidade soviética, e continua uma especialidade russa. Antes da internet, as medidas ativas geralmente exigiam contato direto, como quando a Stasi da Alemanha Oriental conseguiu manter Willy Brandt no poder na Alemanha Ocidental em 1972 ao pagar deputados do parlamento. Nos anos 2010, ao permitir o acesso a centenas de milhões de psiques, as plataformas de mídia social possibilitaram o que os russos chamam de “provocações” em uma larga escala.
Durante sua invasão da Ucrânia em 2014, a Rússia usou essas plataformas para distrair os americanos e europeus do que estava de fato acontecendo, direcionando-os para uma justificada indignação contra seus inimigos preferidos. Em uma amostra do que estava por vir, a invasão foi negada e explicada, ambos ao mesmo tempo, e as explicações contraditórias foram direcionadas às conhecidas vulnerabilidades psicológicas. A guerra cibernética russa de 2014 obteve mais sucesso do que a invasão terrestre, e suas instituições e técnicas seriam usadas durante a campanha presidencial americana que se seguiu. Os americanos foram vítimas das medidas ativas da Rússia em 2016 porque a mudança na relação entre vida e tecnologia havia sido percebida pelo inimigo, mas não por eles próprios.
Enquanto isso, a ideologia americana maximizou a vulnerabilidade criada pelas plataformas sociais. O libertarianismo dos tecno-otimistas americanos era uma forma particularmente implausível e provinciana do mito do (C) – isolado porém racional. É um algoritmo que gera as mesmas respostas independente da pergunta: (1) a culpa é do governo americano; (2) o mercado é a solução (e se não for, o problema não existe); (3) você deve fazer o que quiser o tempo todo. A filósofa Hannah Arendt (1906 – 1975) ofereceu um aviso pertinente sobre ideologia em 1951: “O que convence as massas não são fatos, e nem mesmo fatos inventados, mas apenas a consistência do sistema do qual eles supostamente fazem parte.” O libertarianismo é um desses sistemas: é uma máquina coerente que fornece respostas automáticas para todas as questões humanas. Ele não exige nada das pessoas além de, como dizem os russos, “sentar na internet”. O libertarianismo também serve como justificativa para que os oligarcas digitais não paguem impostos.
A noção de que a interação com máquinas atesta a inteligência humana é um elemento da ideologia libertária. A premissa asimoviana era que reduzir as pessoas a criaturas-como, interessadas no conforto pessoal, era o triunfo da razão. Pensar, afinal, se reduz a nunca mais ter que pensar. Em O Conflito Evitável, o antigo combate ideológico entre “Adam Smith e Karl Marx” tinha perdido sua força porque as pessoas tinham coisas e máquinas para lhes dizer o que fazer com elas. Um espírito parecido animou parte da discussão política no mundo real nos anos 90, quando a palavra de ordem era “o fim da história”, e, nos anos 2000, quando oligarcas do Vale do Silício falavam de “conexão”. A premissa era que a difusão da tecnologia, seguindo a oferta de bens de consumo, tornaria as pessoas razoáveis. Porém a incessante tentativa de nos reduzir aos desejos provocados em nós na verdade nos fez estúpidos. A penetração de internet coincide com uma redução do QI.
Nos meses antes da eleição presidencial americana de novembro de 2016, os descendentes muito distantes de “Adam Smith e Karl Marx”, libertários americanos e espiões russos, se encontraram no novo território da insensatez digital. Vladimir Putin, um antigo oficial da KGB e diretor dos serviços de inteligência russos, era presidente da Federação Russa. Em 2012, eleito presidente pela terceira vez em condições criticadas por Hillary Clinton, Putin havia retomado a rivalidade com os EUA e Europa. Putin é um oligarca dos hidrocarbonetos cuja fortuna pessoal depende da extração de gás natural e óleo. As desigualdades de seu país impedem avanços sociais internos e inviabilizam qualquer competição com o Ocidente em termos de padrão de vida. Putin então declarou que a luta pela civilização não era sobre realizações visíveis, mas sobre uma inocência invisível: a irrepreensível virtude heterossexual da Rússia contra o ocidente decadente, gay e feminista. Esta corrida não seria em direção a alturas celestiais, mas aos abismos do id.
O perigo para um personagem (C) é a alienação de tudo e todos. O risco é inerente à suposição de que o isolamento nos torna analistas perfeitos. No entanto, se empurramos o mundo real na direção dessa suposição, ao permitirmos que um punhado de pessoas se isolem das outras em virtude de sua riqueza extrema, o ceticismo de (C) cresce em direção a uma indiferença hostil. Fica difícil acreditar que aquelas pessoas do outro lado da barreira são reais, e mais difícil ainda é se importar com elas. A única verdade interessante é a própria barreira, a coisa que nos garante isolamento e poder. A verdade se torna assim um perigo ao invés de uma meta, pois a verdade é que se trata de um jogo de cartas marcadas. Personagens (A), empreendedores de mídia capazes de fazer com que a barreira pareça natural e atraente, devem ser recrutados. Personagens (B), os jornalistas que investigam riquezas ocultas e aquecimento global, devem ser suprimidos. A Rússia, que é governada por uns poucos homens de imensa fortuna, expressa exatamente essa lógica.
Putin foi treinado durante a Guerra Fria para ser um interrogador no sentido tradicional. Sua posição nos anos 2010, no entanto, é a de um interrogador pós-moderno, cético ao ponto do total cinismo. Ele e sua oligarquia russa se comportam como um personagem (C) disfuncional, que se sente seguro em seu poder quando nega que haja qualquer verdade além do poder. A política russa começa com o sacrifício ritual dos personagens (B) sinceros e com o patrocínio espetacular dos personagens (A) talentosos. O assassinato de jornalistas russos é um elemento da ampla (e politicamente nova) negação da facticidade como tal. A exploração de emoções, especialmente da ansiedade sexual, por via de um monopólio televisivo, permite que os líderes russos perpetuem um status quo no qual eles detêm todo o dinheiro. Quando as mesmas pessoas controlam a riqueza, o estado e a mídia, o que é o caso na Rússia, isso é possível.
A política externa exigia um instrumento de maior alcance: as plataformas sociais. A Rússia e os EUA são apresentados como adversários na guerra cibernética de 2016, mas isso não é inteiramente correto. A Rússia de fato optou por apoiar um candidato presidencial americano, mas ela não poderia tê-lo feito sem a disponibilidade das ferramentas criadas no Vale do Silício, nem sem o consentimento do Partido Republicano (cujos líderes sabiam o que estava acontecendo). No século XXI, de alguma forma, a dúvida infinita em relação à realidade nunca se estende à riqueza real daqueles que são realmente ricos: ninguém nunca diz que a realidade é o que eu digo que ela é, então vou queimar um bilhão de dólares. É nessa base do “nada é verdadeiro exceto o meu dinheiro” que a oligarquia russa encontrou um terreno comum com o Partido Republicano e os oligarcas digitais americanos. O próprio Trump concorreu à presidência como um garoto-propaganda para a evasão de impostos, que era sua própria definição de inteligência.
O Vale do Silício involuntariamente se tornou um parceiro da oligarquia russa na política externa. O elemento perturbador disso é que os oligarcas do Vale do Silício (com algumas exceções, como Peter Thiel) não estavam cientes de que estavam apoiando Donald Trump. Alguns deles (como Eric Schmidt) pensavam que estavam apoiando Hillary Clinton, mesmo enquanto as plataformas sociais minavam sua campanha. Quando os níveis de atividade dos bots se mostraram mais capazes de prever o resultado final do que as pesquisas de opinião em 2016, a lógica que o Vale do Silício tinha lançado sobre os Estados Unidos se tornou mais importante do que as preferências pessoais de seus oligarcas.
Quem, então, está no comando?
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A tirania digital ocorre quando um personagem (C) encontra um personagem (A) capaz de imitar seres humanos e abandonar a facticidade, derrotando um personagem (B). Para o (C) oligárquico russo em 2016, (A) era digital: Facebook, Twitter, Google, Instagram, YouTube, Tumblr, Reddit e 9GAG. Essas eram plataformas já em operação para propósitos comerciais cujo modo permitiu a operação política de Moscou. De um lado havia americanos que diziam que sujeitar o país à vigilância psicológica era liberdade. Do outro, havia russos que estavam transformando a política em psicologia. Isso era menos uma relação antagônica do que um primeiro encontro encabulado entre a oligarquia dos hidrocarbonetos e a oligarquia digital. O preço da parceria entre (A) e (C) é pago por (B): no caso, por jornalistas americanos que se viram taxados de “inimigos do povo” pelo candidato digital russo.
A Rússia pôde atingir as emoções americanas porque o muro defensivo da facticidade americana tinha se desmantelado. O personagem (B) necessário para a democracia e o Estado de Direito, o repórter investigativo, já tinha sido deixado de lado. Em 1950, quando Turing e Asimov estavam escrevendo, havia, nos EUA, mais assinaturas de jornais do que famílias. A indústria jornalística começou a entrar em declínio com o fim da Guerra Fria, declínio acelerado após a crise financeira de 2008. Um jornal permite acesso à facticidade imprevisível, selecionada por humanos e acessível no mesmo formato todo dia para todo mundo, disponível retrospectivamente no mesmo formato, idêntico por anos e décadas depois.
Nos anos 2010, a internet trouxe ficção grátis, que se misturava com reportagens esparsas de jornais famintos por conteúdo, tudo selecionado pelas plataformas de acordo com as preferências e vulnerabilidades psicológicas individuais, nunca visto da mesma maneira por todos e nunca mais acessível na mesma combinação. Nos EUA de 2016, a principal fonte de notícias era o Facebook, o veículo de entrega favorito da Rússia. Estima-se que o número de contas falsas no Facebook era cinco vezes o número de eleitores americanos, que não sabiam disso. Ninguém tampouco contou a eles que estrangeiros estavam manipulando seu feed de notícias. Os americanos, que haviam perdido o jornalismo local, liam e confiavam no Facebook como se ele fosse um jornal.
“O que o homem precisa é de silêncio e calor”, colocou Simone Weil, “o que lhe dão é um pandemônio gelado”. Plataformas sociais encorajam os usuários a permanecer online oferecendo recompensas intermitentes. Elas oferecem conteúdo que sabem ser alinhado às emoções do usuário, e então o misturam com versões extremas de opiniões e práticas de outro grupo. Assim, o efeito colateral do reforço intermitente é a polarização política. No caso da campanha presidencial americana de 2016, essas tendências entraram em um crescendo nas semanas finais antes da eleição, quando o top 20 de histórias fictícias era mais amplamente lido pelos americanos no Facebook do que o top 20 de notícias, e os bots russos do Twitter declararam #WarAgainstDemocrats [guerra contra os democratas].
Nós ouvimos o que queremos ouvir. O viés de confirmação, nosso desejo de afirmar o que sentimos ser verdadeiro, é uma peculiaridade em torno da qual a atividade digital pode se agrupar. Em 2016, americanos no Facebook eram duas vezes mais propensos a clicar em uma história fictícia se passando por uma notícia do que a clicar em uma notícia verdadeira. Graças apenas ao Facebook, a Rússia atingiu cerca de 126 milhões de cidadãos americanos naquele ano, quase o mesmo número de eleitores (137 milhões). A Rússia (assim como outros atores) expôs os americanos à propaganda de internet de acordo com as suscetibilidades dos próprios cidadãos, que estes haviam involuntariamente revelado através de suas práticas na internet. Ao explorar o viés de confirmação, o ser digital torna discutível qualquer pergunta sobre sua realidade, e assim muda a realidade na qual os humanos vivem. Um ser digital não precisa pensar para nos impedir de fazê-lo.
E assim, nós tememos o que queremos temer. As relações raciais americanas surgiram como um alvo fácil para os guerreiros cibernéticos da Agência de Pesquisa da Internet em São Petersburgo. A Rússia mirou na dor de familiares de policiais mortos em serviço e na dor de amigos e familiares de afro-americanos mortos pela polícia. A Rússia encorajou os brancos a temerem os negros, e os negros a temerem os brancos. A Rússia contou aos eleitores negros que Hillary Clinton era racista, e aos racistas brancos que Hillary Clinton amava negros. Não importava se tais mensagens fossem contraditórias: elas foram endereçadas a diferentes pessoas, com base nas suas sensibilidades já conhecidas. Uma vez que essas pessoas estavam na internet, elas estavam isoladas umas das outras, e nunca perceberiam as contradições.
Qualquer um que pensasse sobre a página do Facebook Heart of Texas (controlada pela Rússia) teria percebido que ela não era americana. Seus autores claramente não eram falantes nativos do inglês, e ela expressava a política russa de apoio ao separatismo fora de suas próprias fronteiras. No entanto, esses fatos sobre o mundo não causaram suspeita. Ao apelar para a hostilidade contra negros, imigrantes e muçulmanos, e ao apresentar os democratas e Clinton como inimigos em vez de oponentes, Heart of Texas chegou até mesmo a induzir texanos indignados a comparecer a falsos protestos. No mundo digital, nós tememos os inimigos que escolhemos, e ignoramos os verdadeiros, que estão a nos atacar – e fazem isso exatamente ao nos alimentar com imagens dos inimigos que escolhemos. Os algoritmos do Facebook ajudaram a Rússia a recrutar os vulneráveis. Heart of Texas tinha mais seguidores do que as páginas do Facebook do Partido Republicano do Texas e do Partido Democrata do Texas juntos.
A Rússia também explorou o Twitter. Nas semanas antes do dia das eleições, algo entre um quinto e metade das conversas americanas sobre política no Twitter eram de bots. No dia antes da abertura das urnas, enquanto a Rússia tuitava sob a hashtag WarAgainstDemocrats, um estudo alertava que bots poderiam “ameaçar a integridade das eleições presidenciais”. Os americanos estavam acreditando em bots russos que confirmavam suas crenças e lhes ofereciam imagens do inimigo democrata. O reforço intermitente venceu o jogo da imitação antes mesmo de ele começar: humanos supunham estar lidando com humanos à medida que suas emoções eram massageadas.
Os bots do Twitter encontraram as fraquezas de pessoas que, ao espalhar memes, assumiam como seu o conteúdo digital russo. Quando a Rússia criou o @TEN_GOP, uma conta do Twitter supostamente pertencente ao Partido Republicano do Tennessee, americanos foram conduzidos pelos bots às suas ficções agradáveis. Através do @TEN_GOP, a Rússia espalhou as mentiras de que Barack Obama tinha nascido na África e que os líderes do Partido Democrata participavam de rituais ocultos. Seu conteúdo era retuitado pelo principal porta-voz de Donald Trump, por seu principal conselheiro de segurança nacional e por um de seus filhos. Um ativista de direita que admirava o @TEN_GOP gravou um vídeo seu negando a intervenção russa na política americana. Quando o @TEN_GOP foi tirado do ar, ele reclamou. Ele não viu a intervenção russa porque ele havia se tornado a intervenção russa. A versão russa do Partido Republicano do Tennessee tinha dez vezes mais seguidores do que o verdadeiro Partido Republicano do Tennessee. Era um de mais de 50.000 sites russos no Twitter apoiando a candidatura de Trump.
A seleção russa de um presidente americano é um caso especial de um problema geral: a vulnerabilidade de um público a estímulos direcionados remotamente a vulnerabilidades conhecidas. Podemos pensar em uma maneira de escapar desse tipo de interação? Os humanos deixaram à solta seres não-pensantes que não são mais espertos que nós, mas nos deixam menos espertos. Se não aceitamos essa responsabilidade, nossas mentes se tornam mecanismos de busca procurando desculpas para o que quer que nossos seres digitais façam conosco. Nós damos voltas e mais voltas, e assim perdemos um tempo precioso.
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Em 1950, Turing e Asimov ainda podiam olhar adiante. Turing previa que um computador ganharia seu jogo de imitação em meio século, Asimov imaginava uma ordem mundial controlada por máquinas meio século depois disso. Os dois homens podiam visualizar seres digitais e humanos juntos dentro de um futuro robusto e previsível.
Nossos seres digitais digerem utopia e excretam dopamina. Este momento do nosso capitalismo se parece com a década de 1970 do comunismo soviético: as promessas de uma revolução transformadora são varridas pela afirmação repetida de que o status quo, a racionalidade visível, é realmente bem legal. Enquanto os ideólogos espalham as boas novas, os oligarcas digitais fogem para as montanhas, seguindo visões de futuro que servem para eles e suas famílias, mas não para seu país ou o mundo. Para os soviéticos, o melhor dos mundos possíveis era a ilusão que precedeu o colapso. Os EUA não encaram o problema real do futuro real, que é o aquecimento global. Alguém poderia perguntar: por que a inteligência artificial ainda não solucionou isso?
O aquecimento global é um desafio high-tech tridimensional à moda antiga, que humanos não distraídos poderiam solucionar. Se os humanos não o abordarem, nós estaremos frente a uma calamidade de ficção científica, e a vida na terra como a conhecemos deixará de ser possível. A própria ficção científica mudou nesse sentido, da pergunta de Turing para considerações sobre a escolha humana em ambientes pós-catastróficos. No entanto, a ascensão das plataformas sociais coincidiu com o declínio no entendimento americano de que o aquecimento global está acontecendo. Os níveis de crença agora voltaram ao que eram, mas só depois de uma década perdida em que o Partido Republicano se tornou negacionista. Metade da população americana acredita que as mudanças climáticas são cientificamente controversas. Ninguém tentou dissuadir John F. Kennedy do programa Apollo contestando a existência da lua, ou Ronald Reagan de sua Iniciativa de Defesa Estratégica argumentando que a terra é plana. B. F. Skinner acreditava que o behaviorismo aplicado impediria a catástrofe ecológica; no entanto, ele parece estar acelerando uma tal catástrofe.
A internet não só cria uma confusão a respeito das mudanças climáticas, como é responsável por elas. Embora os seres digitais sejam invisíveis, seus anti-ecossistemas são imensas instalações refrigeradas que protegem as máquinas em que rodam os servidores; estes e outros atributos físicos da internet emitem mais gases estufa do que a indústria de transporte aéreo. Os oligarcas digitais americanos sabem disso; daí as fantasias sobre escapar e nos deixar para trás.
O encontro da oligarquia digital com a oligarquia dos hidrocarbonetos nos trouxe a presidência do Trump. Trump nega o aquecimento global. O ator digital de Estado que apoiou Trump, a oligarquia russa de hidrocarbonetos, nega o aquecimento global e apoia outros indivíduos e partidos políticos que fazem o mesmo. Um ator digital privado que apoiou Trump, a Cambridge Analytica, pertencia a pessoas que se comportavam da mesma maneira. A família Mercer, sua proprietária, financia o Heartland Institute, um think tank americano que apoia a atividade negacionista na Europa. Outro grande financiador do Heartland são os irmãos Koch, os mais ilustres oligarcas de hidrocarbonetos americanos.
A oligarquia digital e a oligarquia dos hidrocarbonetos entram em contato quando o aquecimento global ameaça a vida humana. Isso gera políticos digitais como Trump e outros assim chamados populistas, que previsivelmente gostam da Rússia e negam o aquecimento global. Toda vez que um novo partido “populista” ganha acesso a um parlamento europeu, como o AfD na Alemanha ou o Vox na Espanha, seus líderes se revelam beneficiários de campanhas digitais, negacionistas das mudanças climáticas, e admiradores de Putin. Enquanto isso, seres digitais mantêm os eleitores amarrados a um eterno presente emocional e nos fazem menos capazes de ver o futuro.
Um oligarca é uma pessoa que imagina que seu dinheiro será capaz de salvar sua família do aquecimento global. A evasão fiscal é a preparação. O libertarianismo é a desculpa. Os seres digitais são a distração que acelera o problema.
Negar a facticidade significa negar o aquecimento global e significa evadir-se da responsabilidade. Se você pensa que pode causar o aquecimento global e depois escapar dele, os seres digitais são os seus aliados naturais. Justamente por essa razão, seres digitais são companheiros estranhos para o resto de nós, pois eles não ligam para a continuidade da vida humana.
A questão não é só que estamos olhando para nossos telefones enquanto a catástrofe se aproxima. É que ao olhar para nossos telefones nós estamos colaborando com nossos oligarcas digitais e de hidrocarbonetos na catástrofe. O futuro desaparece tanto por estarmos distraídos quanto pelo fato de que nossa negligência evoca a escuridão. Sem um sentido do tempo fluindo para a frente, o (C) analítico não pode funcionar, e não haverá soluções tecnológicas. Se nós não pensamos sobre o futuro, ou se o futuro só guarda medo, somos incapazes de ser práticos. Sem um cronotopo reconfortante, personagens (C) se desagregam. Ou, se eles tem muito dinheiro, eles planejam futuros privatizados para eles em dachas [5] fantasiosas: bunkers na Nova Zelândia, colônias em Marte, cérebros em jarros, cápsulas criogênicas, o que seja. Nada disso vai funcionar: parece uma vergonha cortejar a extinção da maioria para agradar as fantasias de sobrevivência idiotas da minoria.
O recuo das virtudes típicas de (C) da vida pública, conhecido como “ascensão do populismo”, é vista pelo mainstream americano de duas maneiras: uma é mais próxima de Turing, a outra, de Asimov. Aqueles do time de Turing – chamemo-nos de liberais perturbados – querem acreditar que os seres digitais não devem estar vencendo o jogo da imitação ao destruir a democracia, nos distraindo das mudanças climáticas, e etc., dado que as pessoas são os atores racionais. Como Turing em seu artigo, eles gostariam que a soberania de (C) fosse um atributo fixo e natural do mundo. Eles não vêem que o (C) pragmático requer o (B) sincero e o (A) criativo para triunfar. Os liberais perturbados percebem, com as sobrancelhas franzidas, que algo saiu errado, mas genuinamente acreditam que o problema pode ser abordado de forma técnica.
Aqueles no time de Asimov – digamos, os libertários enfastiados – batem na mesma tecla no começo: nada disso deveria estar acontecendo, dada a triunfante racionalidade humana e tudo o mais. Não há problema algum no mundo, eles afirmam: vejam os números. Claro, os grandes dados, big data, que estes gostam de citar, só existem porque a ideia de liberdade que eles dizem estimar ruiu em meio à coleta coletiva de dados (o data-farming) que eles aprovam. Os indicadores básicos que os libertários costumavam mencionar, como a expectativa de vida nos Estados Unidos, os níveis de QI ou o número de democracias no mundo, estão todos em declínio.
A segunda jogada dos libertários é diferente: se o individualismo, que eles apoiam retoricamente, está entrando em colapso graças ao coletivismo, que eles de fato gostam, se a oligarquia se tornou digital e o digital se tornou oligárquico... bem, então, que pena, isso só mostra que algumas pessoas são mais espertas que outras. A desigualdade de riqueza agora deve se tornar uma desigualdade de existência. As convicções dos bilionários (e de seu grupo de apoio libertário) devem ser encaradas como ciência a ser respeitada; as convicções de todos os outros são meras emoções a serem ridicularizadas. Verdadeiros estudos científicos sobre mudanças climáticas devem ser ignorados ou negados.
Da mesma forma que uma maçã despedaçada atrai moscas, a negligência humana atrai algoritmos. Seres digitais exploram nosso senso exagerado de nossa própria competência, encorajam nossas crenças falsas, exploram nossas angústias sexuais, nos reduzem a animais isolados e então nos induzem a gastar o que resta de nossa inteligência fornecendo álibis para o que eles fizeram. O teórico cultural Martin Burckhardt escreve sobre “pensamento sem um pensador” Também pode haver pensadores sem pensamentos: nós. Não poderíamos pensar melhor sobre questões com por que depois de ver como seres digitais lidam com isso?
Nossos seres digitais estão nos separando. Pluralismo significa nos mantermos juntos: vários estilos mentais interagem de forma imprevisível dentro de nós, permitindo um contato imprevisível com outros seres pensantes. O (B) que diz a verdade é impotente sem a comunicação do (A) quimérico e a análise do austero (C). Sem um (B) honesto, o (A) metamorfoseante entra em decadência com (C), criando uma tirania digital que mata a democracia e o planeta. O (C) analítico, o mestre pensador da tradição anglo-saxã, desesperadamente precisa de perspectiva e facticidade, a companhia tanto de (A) quanto de (B), para evitar cair em um excesso de confiança auto-destrutivo.
Uma reflexão pluralista sobre digitalidade, sexualidade e humanidade poderia ver a dissolução das barreiras entre digital e humano, e masculino e feminino, como uma oportunidade para pensar em novas combinações de valores. Talvez possamos começar realinhando aquelas que estão acessíveis para nós na tradição literária de fazer perguntas a máquinas.
Que tal (A+B+C): a empatia de (A), a facticidade de (B) e o ceticismo de (C)? Juntos, para variar? ∎
Revisão: Luiz Eduardo Freitas
Traduzido de The New York Review of Books Daily
Copyright © 2019 by Timothy Snyder
[4] No debate, ocorrido na abertura da Exposição Nacional Americana em Moscou, Khruschev e Nixon defendem a superioridade tecnológica de suas respectivas nações a propósito de itens domésticos típicos do American way of life. O encontro foi televisionado na época – e está hoje disponível no YouTube. (N. do T.)
[5] Espécie de casa de campo russa. (N. do T.)