Carta dos editores
Como todos nós, Capivara tem de viver sob a sombra do retorno do totalitarismo. Ignorar o que está acontecendo seria impossível: a ameaça é tão difusa quanto concreta, e seus alvos são as coisas que temos como mais caras. Reagimos com as armas que queremos na sociedade por vir.
O destaque desta edição é “A organização popular e as resistências possíveis”, de Marielle Franco. Marielle, nascida e criada na favela da Maré e vereadora mais bem votada das eleições de 2016 no Rio, foi assassinada com o motorista Anderson Gomes em março de 2018. O texto é parte da sua dissertação de mestrado recém publicada em livro; é, ao mesmo tempo, resultado de uma pesquisa acadêmica e evidência das preocupações que a moviam. Em especial, seu senso de justiça. Nesse sentido, lê-lo é de novo encarar a barbaridade de seu assassinato, tentativa de silenciamento da resistência à injustiça que fundou nosso país, da qual ela despontava como uma das líderes. Mas é também inspirador: Marielle descreve ali algumas das ações coletivas de movimentos sociais nas favelas, exemplos de iniciativas que lidam há muito com as possibilidades e necessidades de resistência. Como afirma Frei Betto no prefácio do livro, seu texto “tem de ser lido, reproduzido, distribuído, debatido e repartido como pão quente capaz de alimentar a mesma esperança encarnada por sua autora”.
O ensaio “A velha crise da democracia”, de Luiz Eduardo Freitas, mostra como o fenômeno bolsonarista, em especial no modo como se relaciona com as redes sociais, traz à tona alguns dilemas da democracia perceptíveis desde a sua fundação na Grécia Antiga. “Amuleto”, de Mariana Ruggieri, parte da frase em um pixo no relógio da Central do Brasil - “Nossa pátria está onde somos amados” - para tecer considerações que deslocam as noções de pátria, pertencimento e amor.
Inauguramos nesta edição algo que esperamos poder repetir no futuro: publicamos, junto com o ensaio “A cabeça dos outros e outras cabeças”, uma interlocução entre autor e editor. André Martins e Hugo Salustiano travam rico diálogo sobre a possibilidade de ver no modo de pensar do brasileiro em tempos eleitorais reflexos do modo de ser dos povos originários.
Publicamos também nesta edição as nossas primeiras traduções. “‘Silêncio é saúde’: como o totalitarismo chega”, do jornalista Uki Goñi, foi publicado originalmente na New York Review of Books Daily. O autor argentino passou muitos anos pesquisando a influência dos refugiados nazistas sobre a ditadura argentina. Concluiu que a absorção dos ex-nazistas ajudou a construir um imaginário social totalitário, preparando a mentalidade argentina para os horrores que seriam impostos.
“O tempo de uma poética feminista”, de Tununa Mercado, traduzido por Clarisse Lyra, é um poderoso e atual ensaio sobre poesia e feminismo, mesmo 28 anos após sua publicação original. O texto dialoga bem com a poesia de Laura Vaz, cuja abordagem fragmentária, em ‘Catherine’ e outros poemas, revela largos veios da existência da voz poética.
Com isso, continuamos povoando nossa lagoa com luta e beleza; espaço aberto à reflexão sem medo. ∎
n. 2 | 12-2018
Antonio Kerstenetzky
Luiz Eduardo Freitas
Editores
André Martins
Clarisse Lyra
Daniel Mano
Hugo Salustiano
Nathalia Carneiro
Victor Fernandes
Conselho editorial
Beatriz Reis
Luiz Eduardo Freitas
Projeto gráfico
Imagem de chamada:
foto da instalação "Relógio solar", de Bianca Madruga.