O mistério do edifício cinza
Júlio César Bernardes
Conquanto âncoras, comentaristas, câmeras e demais profissionais da telecomunicação tivessem se preparado com muito aprumo para as notícias matinais, apresentando-se pontualmente em seus respectivos postos, as pessoas, naquela manhã, ao ligarem seus televisores, não encontraram qualquer noticiário. Mesmo as que preferiam começar o dia distantes das tragédias e escândalos que se levantam com o sol, dedicando-se a desenhos, seriados ou reprises de programas culinários, experimentaram a frustração. Em todos os canais, abertos ou pagos, nacionais ou não, a imagem que alcançava as casas era a mesma: um prédio.
Cinza da cor do chumbo, como que para reafirmar sua solidez, a construção era mostrada de sua base até o topo, processo que, realizado lentamente, demandava alguns minutos. Quando terminada, a cena era retomada, procedimento repetido por uma hora exata, a longa subida hipnotizando espectadores em lares, escritórios e consultórios. Estimulavam a curiosidade certos detalhes incomuns. O tal prédio era desprovido de janelas e portas, composto por quatro altos paredões impenetráveis, uma verdadeira fortaleza de entrada desconhecida. No chão, nada o rodeava, nem paredes, nem grades, nem ruas, apenas grama bem aparada. O mais peculiar, contudo, era o céu que o edifício desafiava, de um tom lilás desalentador, natural de um momento muito específico do amanhecer, e que, no entanto, durava todo o período da imagem. O silêncio que acompanhava a gravação era sepulcral.
No restante do dia, ao contrário, o barulho foi alto. Não se falou de outra coisa. Mesmo quando as emissoras voltaram a transmitir seu conteúdo normalmente, os comentários sobre a misteriosa estrutura foram incessantes, oscilando entre o interesse e o espanto, a depender do quanto se enfatizava a intencionalidade desconhecida do fenômeno. Tal foi o burburinho imperando na mídia e nas ruas, que, de tarde e de noite, quando a transmissão do prédio tornou a invadir as residências, a atenção despertada ultrapassou, em muito, aquela provocada pela manhã. Indivíduos que se levantavam para deixar a sala pararam, de pé sobre o tapete, para assistir ao que, aparentemente, ninguém sabia explicar. Chiados reprovadores exigiam silêncio para que o silêncio imponente do prédio não fosse interrompido.
O dia seguinte foi o descontrole. Notas e pronunciamentos se abstendo de responsabilidade sobre o vídeo geraram todo tipo de discussão. Os mais entusiastas não tardaram em elogiar a criatividade dos publicitários por trás da peça, ao passo em que os mais alarmados já falavam de terrorismo. Entre esses extremos, reportagens das mais variadas decoravam a capa de revistas e jornais, de modo que o prédio, além de dobrar sua exposição na televisão até o fim do dia, aparecendo seis vezes e ocupando já seis horas da programação, teve sua fachada estampada em bancas, mercados e outras lojas.
Especulou-se a semana inteira sobre o significado da transmissão. Políticos, cientistas, professores, artistas e toda uma gama de profissionais mais ou menos influentes eram entrevistados continuamente em busca de uma resposta para o enigma. Falhavam, entretanto, e não somente em analisar o evento, como também em explicar por que o edifício cinza aparecia cada vez mais. A despeito de todos os veículos negarem veementemente qualquer relação com o prédio ou sua imagem, ele surgia agora doze ou treze vezes por dia, frequência tamanha que, ao se ligar o televisor aleatoriamente, havia mais chances de vê-lo do que de encontrar a programação usual. Os poucos apreciadores do prédio, vendo-o tornar-se corriqueiro, reagiram com progressivo desinteresse. A maioria das pessoas, porém, começava a temer, de fato, a persistente e indesejada gravação.
E como não temer o que não apenas se enquadra na categoria do inexplicável, mas insiste em demonstrá-lo? Pois a transmissão, aparentemente insatisfeita com a onipresença televisiva, apoderou-se em seguida de celulares, computadores e aparelhos afins. E não foi repetindo a estratégia de aparições crescentes, mas adotando já o roteiro mais intenso de projeção do prédio. Bastava ligar um dispositivo dotado de tela para que nela se encontrasse a construção, inabalável e indecifrável. Podia-se, em tais momentos, desligar e religar o aparelho que pouco adiantava, a imagem era resgatada do ponto em que fora interrompida, requisitando seus demorados minutos de audiência.
A preocupação se tornou absoluta, porém não era, ainda, a histeria. Primeiro porque muitas pessoas se irritavam mais do que se assustavam, e a irritação exige uma centelha de superioridade que não condiz com o temor. Segundo porque, por maior que fosse o receio disseminado pelas gravações, ele era, até aquele momento, de uma natureza virtual, potencialmente profundo durante a exibição do vídeo, mas facilmente esquecido depois. Tão logo as pessoas deixavam de lado qualquer objeto que permitisse a difusão da cena, a segurança voltava a prevalecer, intocável no conforto dos lares. Mas a ilusão da distância durou pouco.
Logo as rádios foram atacadas. As vozes e as músicas desapareciam, substituídas pelo silêncio mórbido que perdurava a duração exata da imagem nas telas, e o mesmo ocorreu com os telefonemas. Não se falava mais sem, durante o diálogo, escutar-se, de ambos os lados, por longos minutos, o vazio imperativo do edifício. E as fotos que eram tiradas, quando vistas, mostravam o prédio. E os anexos de e-mails, quando abertos, revelavam o prédio. E em cada residência, pela manhã, junto das contas e das propagandas, encontrava-se, na caixa de correio, em panfletos de diversos tamanhos, mais figuras da terrível estrutura que assombrava a todos. Declarou-se, enfim, o pânico.
Negociações falharam, contratos foram recusados, encomendas foram perdidas e pouco respiravam os encarregados de mensurar o prejuízo econômico. Lideranças espantadas se manifestavam pedindo calma. Pesquisas e investigações complexas eram anunciadas. Falava-se de ajuda internacional. Pouco importava, contudo, para as pessoas afastadas desses âmbitos, que medidas eram tomadas, pois sua atenção estava presa nas paredes cinzentas cada vez mais próximas.
Como não podia ser diferente, o medo se transformou em hostilidade. Fontes oficiais prometiam sanções drásticas aos responsáveis pelas transmissões. Mais importante do que isso, e de mais interesse da população acuada, o próprio prédio era atacado, sua existência questionada das mais diversas formas. Especialistas comprovavam, recorrendo à luz e ao relevo, que a construção não existia. Outros demonstravam, por meio de computadores, como a imagem fora criada. Houve até intelectuais de várias estirpes argumentando que, tal qual uma porta, criada para levar objetos de um ambiente para outro, existia ao ser usada, um prédio, se não permitia que as pessoas entrassem e saíssem, não era, logo, um prédio. Tentativas semelhantes, piores ou melhores, não faltaram, mas se limitaram a evitar que o ridículo fosse experimentado sozinho. Nada que se dissesse acalmava os ânimos e tampouco desafiava a construção. Pelo contrário, tornaram-se corriqueiros os relatos de pessoas que a tinham visto.
Em avenidas movimentadas, campos de futebol, concertos musicais, plantações de soja ou laranja, localidades separadas, às vezes, por centenas de quilômetros, os testemunhos eram os mais variados. E cresciam. Eram proferidos com espanto e compartilhados com fervor, as estórias ganhando detalhes cada vez que eram narradas. Ouviu-se até mesmo que o prédio ficava no mar, escondido pela neblina na qual um barco pesqueiro se perdera. Estava, afinal, em todos os lugares.
Buscava-se respostas em fontes até então ignoradas. A ufologia justificava bem o ocorrido, e o ocultismo apresentava sinais claros, há muito estudados, de que uma entidade surgiria, soberana e inexorável, redefinindo as relações humanas. Por outro lado, calados nas salas de estudo, o buraco negro e a antimatéria, as supercordas e as luas de Júpiter aguardavam sua vez, cientes da urgência do novo tópico. Assim, leigos e pesquisadores, ateus e devotos, todos dedicavam seu tempo a compreender se o prédio existia ou não, onde se encontrava e como se manifestava, sem jamais perceber que, ao mencioná-lo, estavam sempre, acima de tudo, tornando-o mais real.
Quando a imagem do prédio não invadia os televisores, era dele que programas falavam. Quando não silenciava estações de rádio, era a ele que as notícias se referiam. Nas páginas que não continham fotografias suas, era seu mistério que os textos abordavam. E quando se saía de casa, era o prédio a conversa nas ruas. E quando se ia à missa, era o prédio que os céus explicavam. Era o prédio as manchetes nos sites, era o prédio o tema das músicas, era o prédio o pensamento geral. E cada vez que se referia ao prédio, colocava-se, sem saber, um tijolo cinza a mais no horizonte, fortalecendo a estrutura que enclausurava as vozes, petrificava os gestos e sufocava a vida, e era por isso que, em qualquer lugar, a qualquer momento, era possível vê-lo, solidificando-se a partir do ar, edificando-se por diferentes cidades, unindo-as na mesma cela.
Não havia interação social que o prédio permitisse escapar. Vivia-se ao pé daquelas grandes paredes escuras, tão altas que pareciam se curvar, prestes a engolir a terra. Cada pessoa era diariamente acompanhada pela construção, a fórmula arquitetônica perfeita da vigilância, presente no que se passava nas ruas, nas casas, nos bolsos e nas mentes. E em consonância com a ideia que se tinha de seu interior, nasciam, no cerne da imaginação coletiva, vastas redes de corredores, sinuosos e asfixiantes, nos quais os blocos cinzentos do prédio já não eram meras sentinelas, mas condutores da vontade alheia, responsáveis por garantir que apenas a ele fosse dirigido qualquer interesse. Ao que tudo indicava, além de existir através da percepção humana, importava ao prédio que nada mais o fizesse, que ele restasse absoluto abaixo do céu. E bastava uma atenção dispersa, o vislumbre de uma ideia nova, para que lá se erigisse a torre, esmagando tudo o que não a fosse.
Foi por não suportarem mais a concretude do cárcere, por sentirem diminuído o espírito junto da realidade que se compactava, por se afogarem na ansiedade pelo sabor já desconhecido do novo, enfim, foi por se rebelarem contra o edifício cinza que os moradores de uma cidade, numa certa tarde, juntaram, numa grande pilha de metal e papel, os pertences que, de alguma forma, alimentavam o poder do prédio, reunindo cartas e computadores, jornais e celulares, rádios e, obviamente, televisores, desde os mais baratos e antigos aos caríssimos modelos de ponta, para em seguida, num momento de profundo desespero, atearam-lhes fogo.
Dispostos em círculo ao redor das chamas, invocavam sem intenção a aparência de um antigo ritual. As línguas ardentes que acariciavam o grupo, abusando da atração mística que lhes é natural, convenciam-no do poder purificador tão peculiar de tudo o que queima. E a fumaça tempestuosa, cinza da cor do chumbo, parecia, realmente, a alma exorcizada do prédio, extravasando sua fúria totalitária conforme rugia para o firmamento. Algumas pessoas, de tão emocionadas com o espectro que finalmente exilavam, começaram a chorar.
E então a primeira senhora tossiu. Foi pausada e timidamente, imperceptível à comoção geral, porém outras pessoas a seguiram, engrossando o coro engasgado. Quando o som das gargantas arranhadas e dos punhos batendo nos peitos venceu o crepitar das labaredas, notou-se, afinal, que o miasma vingativo do edifício, em vez de perder-se no espaço, continuava a empreitada que iniciara em vida, isto é, suas cinzas confinavam os moradores da cidade, agora de dentro para fora. Já não se via nada, tão densa era a fumaça, e pouco se entendia do que se escutava, tantos eram os gritos assustados. Guiadas pelo calor da fogueira, as pessoas correram na direção oposta, mas, para onde quer que fossem, barravam-lhes o caminho as sólidas paredes da fortaleza, erguidas misteriosamente. Sem alternativa, alguns se atiraram ao fogo, esperançosos de que restasse um aparelho capaz de conectá-los ao exterior. Os demais permaneceram em frente aos muros, arrebentando os dedos contra os blocos, despedaçando o que sobrara da voz, a fumaça fumegando nos pulmões. E a despeito da força empregada nos socos e gritos, principalmente nos últimos segundos, ninguém jamais os escutou.
Pois o silêncio, fora do prédio, era sepulcral. ∎
Edição: Antonio Kerstenetzky, Luiz Eduardo Freitas
Júlio César Bernardes é internacionalista e mestrando em Sociologia pela USP. Pesquisa programas de incentivo à publicação de autores brasileiros no exterior. Em 2019, recebeu menção honrosa no Prêmio Nascente, na categoria contos.