‘Silêncio é saúde‘: como o totalitarismo chega
Uki Goñi
Tradução: Luiz Eduardo Freitas
Os supremacistas brancos que marcharam gritando “Sangue e solo” no ano passado pelas ruas de Charlotesville, no estado de Virginia (EUA), provavelmente não sabiam que o ideólogo nazista a usar originalmente o slogan – Blut und Buden – para promover a criação de uma raça alemã superior não era um alemão nativo. Richard Walther Darré proclamou a existência de uma conexão mística entre a pátria alemã e os alemães “racialmente puros”, mas na verdade nasceu com o nome de “Ricardo” no outro lado do Atlântico, em Buenos Aires.
Enviado por sua família de imigrantes aos nove anos para estudar na Heimat, Darré mais tarde se especializou em agricultura, escolha óbvia para alguém com bagagem argentina na época em que o bife suculento e o trigo abundante dos Pampas fizeram o país ficar famoso como o “celeiro do mundo”. Por algum tempo, durante os anos 20, ele chegou a pensar em voltar para Buenos Aires e tentar a vida de fazendeiro, mas isso foi antes de seus escritos chamarem atenção do então ascendente Partido Nazista, de Adolf Hitler. Seu livro de 1930, A New Nobility of Blood and Soil (“Uma nova nobreza de sangue e solo”, em tradução livre), no qual propunha aplicar métodos seletivos de criação de gado para a procriação de humanos arianos perfeitos, encantou o Führer.
Já em 1932, Darré ajudou o líder das SS, Heinrich Himmler, a estabelecer a Secretaria de Raça e Povoamento para salvaguardar a “pureza racial” dos membros da organização. A obra de Darré também inspirou o programa nazista Lebensborn (Fonte de Vida), que premiava “mulheres solteiras e meninas de bom sangue” que tivessem filhos com oficiais de raça pura das SS. Hitler ficou tão impressionado com o movimento “Sangue e solo” que em 1933 ele nomeou Darré como ministro da Agricultura da Alemanha. Darré se manteve no posto até 1942, quando, de acordo com o que sugere seu arquivo nas SS, ele parece ter desenvolvido problemas de saúde mental. (Darré foi condenado no julgamento dos ministérios do Tribunal de Nuremberg por expropriar a terra de centenas de milhares de fazendeiros holandeses e judeus e reduzi-los à condição de servidão, e serviu tempo de prisão. Morreu de câncer em 1953.)
Mesmo se identificando como alemão, Darré parece ter mantido uma ligação afetiva com a terra onde nasceu. De acordo com os relatos que sobreviveram, ele autorizou a importação de bifes de pampas para a delegação da Argentina nas Olimpíadas de Berlim em 1936 e até se encontrou com alguns de seus atletas. “Ele era o único que falava bom espanhol”, me disse o seu irmão de 89 anos, Alan Darré, em uma entrevista de 1997, quando eu pesquisava sobre o refúgio de criminosos nazistas na Argentina para o meu livro The Real Odessa. O fato de as teorias raciais malucas do movimento 'Sangue e solo' de Darré ainda ressoarem nas mentes da extrema direita americana mais de 90 anos depois de terem inspirado Hitler serve como um lembrete alarmante de quão vulneráveis as sociedades são ao vírus do racismo e do totalitarismo.
Para mim, não se trata de uma mera observação acadêmica. Ter nascido Estados Unidos, onde meu pai trabalhava na embaixada argentina, não faz de mim cidadão americano: a Décima Quarta Emenda exclui os filhos de diplomatas estrangeiros. Ainda assim, cresci como se o fosse: jurava lealdade à bandeira todas as manhãs no pátio da Annunciation School, na Avenida Massachussetts. Mais tarde, já um jovem adulto na Argentina, trabalhei para um jornal de Buenos Aires que era publicado em inglês, onde noticiava os crimes da ditadura sangrenta que governou a Argentina entre 1976 e 1983. Como jornalista, testemunhei primeiro a erosão e depois o total colapso das normas democráticas, e vi como uma autocracia sem coração pôde mobilizar medos e ressentimentos populares para esmagar oponentes.
Uma questão incômoda, que me ocorreu pela primeira quando eu era um repórter de 23 anos no Buenos Aires Herald, voltou recentemente a me assombrar. O que aconteceria se os Estados Unidos, o país onde eu nasci e passei a minha infância, caísse no tipo de vortex totalitário que testemunhei na Argentina daquela época? E se os elementos mais regressivos da sociedade terminassem por prevalecer? Será que eles também travariam uma guerra contra a democracia pluralista? A atual reação violenta dos EUA contra os imigrantes e refugiados, o aborto legal, e mesmo o casamento igualitário, remete às memórias desconfortáveis da derrocada da democracia que precedeu a entrada da Argentina em um clima de repressão e assassinato em massa.
Desde então, no meu trabalho como escritor, voltei-me à questão de como os nazistas e seus colaboradores fugiram para a Argentina. Assim, tornei-me dolorosamente consciente de como sua presença ao longo dos trinta anos entre o fim da Segunda Guerra e o golpe de 1976 tinha anestesiado o senso moral de uma nação até então afluente e bem-educada, gerando consequências desastrosas para o seu povo. A convivência forçada dos argentinos com os fugitivos nazistas, passei a acreditar, gerou uma normalização dos crimes que os imigrantes alemães cometeram. “Ele veio ao nosso país em busca de perdão”, disse o cardeal argentino Antonio Caggiano à imprensa quando agentes israelenses capturaram o arquicriminoso nazista Adolf Eichmann em 1960 e o contrabandearam da Argentina para ser julgado em Jerusalém. “A nossa obrigação enquanto cristãos é perdoá-lo pelo que fez.”
Cerca de quinze anos depois, a Argentina começou a mergulhar de cabeça no totalitarismo, e suas forças armadas embarcaram em um programa de assassinato em massa que diferia em escala, mas não em essência, do nazista: estima-se que 30.000 pessoas foram “desaparecidas” pela ditadura. Os mesmos políticos e líderes religiosos que viraram o rosto para a presença de criminosos nazistas na Argentina fingiram não ver as manchas de sangue nas mãos dos generais que se ajoelhavam para receber sua benção na Catedral de Buenos Aires. A maior parte da minha vida adulta foi assombrada pela necessidade de responder à questão sobre como isso pôde ter acontecido na Argentina. E como pode vir a acontecer em outros lugares.
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Graças aos dois períodos em que meu pai trabalhou em Washington, eu passei nove dos meus primeiros quatorze anos nos EUA. Minhas memórias são um cartão postal da cultura americana dos anos 50 e 60. Um ex-piloto da Segunda Guerra vivia do outro lado do nosso quintal. Eu era um patrol boy na high school e ganhava alguns trocados entregando jornais, atirando-os da minha bicicleta no jardim dos vizinhos, exatamente do modo como se vê nos filmes daquela época. Teria sido difícil achar alguém com uma confiança maior que a deste jovem no sistema americano de valores, que incluía o traço tipicamente americano, e não muito elogiável, de ingenuidade em relação ao mundo além dos Estados Unidos.
Meu primeiro pressentimento sobre a existência de uma realidade diferente surgiu aos quatorze anos, após chegar no St. Conleth’s College, em Dublin, quando meu pai foi transferido para a missão diplomática argentina na Irlanda. Como a Argentina, a Irlanda tinha sido neutra durante a Segunda Guerra, e posteriormente serviu de refúgio para um pequeno contingente de nazistas e colaboradores. Entre esses estava o meu professor de francês, Louis Feutren, que fugiu de uma sentença à prisão na França por ter servido como SS-Oberscharführer durante a guerra.
Feutren aterrorizava seus estudantes, arremessando livros didáticos em nós e xingando em francês por detrás de um cigarro Gauloise que permanentemente desafiava a gravidade na beira do seu protuberante lábio inferior. Em vez de ouvir histórias de proezas da luta contra os nazistas na guerra, eu agora aprendia francês com um ex-agente da SS. Foi a primeira daquelas que interpreto retroativamente como minhas lições sobre normalização.
Essa normalização dos tons totalitários foi acelerada depois de minha família retornar definitivamente para a Argentina, quando eu tinha dezenove anos. Para me familiarizar com Buenos Aires, eu fazia longas caminhadas pela capital. Um dia, em 1974, encontrei-me paralisado na enorme Avenida 9 de Julio, que divide Buenos Aires na metade. No meio dessa avenida há um alto obelisco branco, o marco mais conspícuo da cidade, e nesses dias haviam pendurado nele um outdoor giratório. Dando voltas, inscrito em letras azuis garrafais sobre um fundo branco, o slogan “Silêncio é saúde”.
A cada volta, a placa adestrava os argentinos à censura total e à supressão do livre discurso que a ditadura logo viria a impor. A mensagem no outdoor tinha sido idealizada por Oscar Ivanissevich, o reacionário ministro da Educação da Argentina, supostamente para advertir motoristas sobre o uso excessivo de buzinas. Sua outra missão era o “expurgo ideológico” das universidades argentinas, que tinham se tornado um foco da resistência estudantil. No começo de seu período como ministro, Ivanissevich liderara uma amarga campanha contra a tendência “mórbida... perversa... ateia” da arte abstrata, que remetia à invectiva nazista contra a arte “degenerada”. Durante esse período, sua irmã e seu sobrinho estiveram envolvidos na imigração ilegal de nazistas para a Argentina.
A placa orwelliana de Ivanissevich apareceu justo no momento em que a violência da direita irrompeu, às vésperas do golpe militar. No mesmo ano, 1974, Ivanissevich havia nomeado como reitor da Universidade de Buenos Aires um notório admirador de Hitler: Alberto Ottalagano, que posteriormente intitulou sua autobiografia Sou um fascista, e daí?. Seu trabalho era se livrar do tipo de jovens militantes esquerdistas que se reuniam em volta do Hotel Sheraton reivindicando sua transformação em um hospital infantil, e ele os perseguiu e expulsou com entusiasmo. A possibilidade de ser colocado em sua mira era mais do que uma preocupação acadêmica; quinze destes jovens foram assassinados por esquadrões da morte de direita sob a reitoria de Ottalagano.
Meio estrangeiro na minha própria terra, eu notei o que aqueles que já tinham se normalizado não conseguiam: esta era uma população habituada à intolerância e à violência. Dois anos mais tarde, o slogan de Ivanissevich fez uma reaparição macabra. No porão do campo de morte da ditadura localizado na Escola de Mecânica da Armada (conhecida como ESMA), onde cerca de 5.000 pessoas foram exterminadas, os agentes penduraram dois banners no corredor que levava às celas de tortura. Em uma, lia-se “Avenida da Felicidade”; em outra, “Silêncio é saúde”.
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Compreender totalitários em potencial requer entender a perspectiva que eles têm de si mesmos como vítimas. E, em certo sentido, são vítimas: do seu medo delirante dos outros; dos nebulosos, ameaçadores outros que perturbam suas imaginações febris. Isso é algo que eu vi repetir-se nas muitas entrevistas que realizei tanto com os perpetradores da ditadura argentina quanto com os nazistas já envelhecidos que tinham chegado clandestinamente à costa argentina três décadas antes. (Minhas entrevistas com o segundo grupo estão arquivadas no US Holocaust Memorial Museum, em Washington, D.C.) Em ambos os casos, seus medos eram irracionais, dado o inabalável domínio das forças armadas na Argentina e dos nazistas na Alemanha, mas esses fatos eram ignorados pelos meus entrevistados.
Como o meu método era oferecer o respeito e a paciência dos quais eles se sentiam merecedores (por mais difícil que isso tenha sido pra mim), esporadicamente pareciam conscientes de que tinham se tornado dóceis reféns de alucinações absurdas. Conseguir que eles o admitissem total e conscientemente já era outra história. A quimera do inimigo poderoso e maligno – responsável por todos os males percebidos – tornava compreensíveis, a partir de simplificações maniqueístas, as realidades complexas e ambíguas. Essas pessoas eram totalitárias não apenas por acreditarem em um poder absoluto, mas também porque seus padrões de pensamento binários admitiam apenas explicações totais.
As forças armadas da Argentina e um grande número de simpatizantes civis eram particularmente propensos aos medos de uma ameaça existencial pouco definida. A cultura jovem dos anos 60, a revolução sexual, os protestos de estudantes dos anos 70 – tudo isso ativou alarmes em seus corações. Que uma geração mais jovem questionasse suas convicções religiosas, seus costumes sexuais hipócritas e propusesse soluções políticas alternativas parecia uma blasfêmia. Os militares decidiram reverter essas tendências com violência e proteger a Argentina da maré insurgente da modernidade. Para isso, formularam um plano de aniquilação sistemática voltado principalmente aos jovens argentinos. Não se tratava apenas de uma contenda ideológica, mas de uma guerra geracional: cerca de 83% das estimadas 30.000 vítimas fatais da ditadura tinham menos de 35 anos. (Um número desproporcional também era de judeus.)
Os líderes da ditadura, nascidos na década de 20, começaram suas carreiras militares durante a Segunda Guerra em um país oficialmente neutro, mas secretamente simpático a Hitler. Para as mentes deturpadas desses ultranacionalistas, Hitler estava abrindo caminho para uma “Nova Ordem Cristã”, na qual caberia à Argentina uma parte gloriosa. “O Hitlerismo é, paradoxalmente, a porta de entrada para o Cristianismo”, afirmou o padre antissemita Julio Meinvielle, que exerceu forte influência sobre os militares, no seu livro de 1940 Hacía el cristianismo. Uma vez que Hitler tivesse derrotado o comunismo e o capitalismo, ambos considerados encarnações malignas do materialismo ateu, a Igreja poderia intervir e presidir um mundo purificado. “Este é precisamente o grande serviço que sem saber e sem querer o Eixo está prestando à Igreja”, conclui Meinvielle.
A simbiose entre Igreja e Exército tornou-se tão forte na Argentina que, em 1944, a Virgem Maria foi promovida à patente de general. Cerimônias militares para celebrar sua promoção aconteceram nas igrejas de toda a Argentina. Mesmo em 1950, oficiais militares se esforçaram para decorar uma estátua da Virgem em frente à Catedral de Buenos Aires com uma faixa de general. Batizados nessas águas, os generais que nos anos 70 vieram a liderar a ditadura afirmavam temer, acima de tudo, que a Argentina mergulhasse no comunismo. “Em resposta à corrupção, ao caos, à indisciplina moral e ao perigo real de uma desintegração nacional em que o nosso país se encontrava, as Forças Armadas assumiram o poder político seis meses atrás para restaurar a ordem subvertida”, uma propaganda de TV para a junta proclamaria mais tarde, sobre a imagem de um mapa da Argentina que se desintegrava.
Tamanha era a paranoia sobre uma ameaça à la Cuba que um grande estrato da sociedade argentina recebeu calorosamente a intervenção militar. Na verdade, eram tão delirantes em seus medos quanto as guerrilhas de esquerda em suas ambições. Estes últimos alardeavam ideias como “da imaginação ao poder”, copiadas dos atos dos estudantes de Paris em maio de 1968. A ameaça que representaram à estabilidade do poder nunca foi além de algumas poucas façanhas dignas de manchetes – sequestrar empresários estrangeiros ou alvejar, de carro, agentes militares. Sua insurgência nunca foi uma ameaça aos governos democráticos de Juan Perón, que morreu no cargo em 1974, ou de sua viúva Isabel Martínez, que sucedeu ao marido como presidente.
Com a oportunidade oferecida pelo movimento de guerrilha, os militares intervieram, retirando a ineficaz Martínez do cargo e se proclamando como os salvadores da nação. Com muita alegria, as forças de segurança se viram libertadas das restrições da legalidade. Com o Congresso fechado e a imprensa amordaçada, rapidamente organizaram esquadrões da morte que não respondiam a ninguém. A visão de sedãs Ford Falcon descaracterizados, mas sempre verdes, conduzidos em velocidade vertiginosa pelas ruas de Buenos Aires com metralhadores apontadas pelas janelas era aterrorizante de início. Mas, como muitas coisas que ocorreram depois do golpe, tornou-se rapidamente tão comum que deixou de receber atenção consciente.
Foi durante esses anos na Argentina que eu aprendi como o verniz de legalidade pode rapidamente ser arrancado de uma sociedade. Em 1977, com um ano de ditadura, comecei a trabalhar para o Buenos Aires Herald, um pequeno jornal em inglês que era o único veículo de mídia reportando os crimes do regime. “Eu tinha o privilégio de falar quando todo mundo estava em silêncio”, diz o então editor do Herald, Robert Cox, um bretão que hoje vive em Charleston, na Carolina do Sul. Não era o fato de ele ser britânico ou a circulação limitada de seu jornal que permitia a Cox publicar o que os outros jornais não podiam. Ele simplesmente não conseguia permanecer em silêncio diante da carnificina que testemunhava. Diferentemente de muitos argentinos, ele não tinha sido dessensibilizado pelo convívio com fugitivos nazistas; crescera em Londres durante a guerra, entre as ruínas de edifícios destruídos pelos mísseis e bombas de Hitler.
Mas houve um preço a pagar pelo privilégio do qual fala Cox. Ao voltar para casa após meu primeiro dia de trabalho, avistei três policiais à paisana – inconfundíveis, apesar de seus cabelos um pouco longos, jaquetas de couro e calças bocas de sino – deixando o meu prédio e carregando uma bolsa de couro na qual se podia ver um carretel de fita de gravação. A polícia tinha grampeado meu telefone, o zelador do prédio sussurrou para mim. Um Ford Falcon verde estava estacionado do outro lado da rua.
A cumplicidade discreta do meu zelador não era regra; era muito mais comum que as pessoas delatassem seus vizinhos, prática, é claro, encorajada pelas forças armadas. Em dezembro de 1979, Cox foi obrigado a se exilar com sua esposa e cinco filhos, todos argentinos, depois de ter recebido ameaças que revelavam conhecimento sobre detalhes da rotina de família. Até hoje, a família de Cox permanece convencida de que um conhecido próximo forneceu tais informações para a ditadura. A transformação de amigos em informantes é uma característica definidora de regimes totalitários.
Se você quer saber o que sustenta a violência totalitária em uma sociedade, a psicologia é provavelmente mais útil do que a análise política. Entre a elite, havia um apoio entusiasmado à ditadura. “Falar sobre os desaparecidos ou sobre as coisas que aconteciam era visto como um tipo de gafe”, diz Raymond McKay, um colega jornalista do Buenos Aires Herald, em Messenger on a White Horse, documentário de 2017 sobre o jornal. “Era encarado como de mau gosto, porque as pessoas não queriam saber.”
Aqueles que viveram suas vidas inteiras em democracias que funcionam podem achar difícil entender a facilidade com que as mentes das pessoas podem ser cooptadas pelo lado negro do totalitarismo. Acostumamo-nos a acreditar que tal passagem demandaria um tipo de persuasão lenta e trabalhosa. Não demanda. A transição, como a do dia para a noite, é uma troca desconcertante. A despeito do que muitos pensam, a coexistência civil em uma cultura de tolerância não é sempre a norma, ou mesmo um desejo universal. A democracia é um estado de coisas garantido a duras penas e facilmente reversível, do qual muitos desejam se livrar em segredo.
Para que não haja nenhuma dúvida de sua intenção, a ditadura se intitulou como “Processo de Reorganização Nacional”. Livros foram queimados. Intelectuais foram exilados. Como inquisidores medievais, a ditadura proclamava – em discursos inflamados que eu escuto ecoarem atualmente nas falas conspiratórias de populistas e nacionalistas americanos – estar travando uma batalha para salvar “a civilização ocidental e cristã” da destruição. Tal guerra, por definição, incluía a aniquilação física de mentes infectadas, mesmo que elas não tivessem cometido crime algum.
Outra característica aterrorizante do totalitarismo é que ele ataca as partes mais fracas da sociedade: imigrantes e crianças. O programa inspirado em Darré, Lebensborn, apreendia crianças que pareciam arianas nos territórios ocupados pelos nazistas, separando-as de seus pais e criando-as como alemães “puros” em casas Lebensborn. Na Argentina dos anos 70, as forças armadas criaram um programa semelhante. Havia um grande número de mulheres grávidas entre os milhares de jovens capturados nos campos de morte da ditadura. Matá-las enquanto carregavam bebês em suas barrigas era um crime que nem mesmo as forças armadas da Argentina eram capazes de cometer. Em vez disso, eles mantinham as mulheres vivas, como incubadoras humanas, matando-as assim que davam à luz, e entregavam seus bebês a casais militares e cristãos que os criavam como se fossem seus. Uma sociedade que separa crianças de seus pais, seja qual for a razão, já está no caminho do totalitarismo.
Essa prática hedionda inspirou em parte Margaret Atwood a escrever O Conto da Aia, em 1985. “Os generais na Argentina jogavam pessoas para fora de aviões”, disse Atwood em uma entrevista para o The Los Angeles Times no ano passado. “Mas, se fosse uma mulher grávida, eles esperavam até que ela tivesse o bebê, e depois entregavam o bebê a alguém no seu sistema de comando. E então jogavam a mulher para fora do avião.”
Essa foi a maior vingança dos homens mais velhos que temiam a nova geração rebelde. Não apenas obliteravam seu suposto inimigo, como as crianças do inimigo eram criadas para se tornarem os cidadãos modelos, obedientes às autoridades contra as quais seus pais biológicos haviam se rebelado. Estima-se que cerca de 500 bebês foram tomados de mães assassinadas desta maneira, embora até agora apenas 128 tenham sido encontrados e identificados com testes de DNA. Nem todos aceitaram se encontrar com suas famílias biológicas.
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Para muitos argentinos, então, o Exército representou não a subjugação a uma lei arbitrária, mas a libertação de suas frustrações, da complexidade e dos comprometimentos do governo representativo. Uma grande parte da sociedade agarrou com alegria a mão estendida pela certeza totalitária. Repentinamente, com a conformidade a um poder único e incontestável, a vida tornou-se mais simples. Para aqueles que estimam a democracia, é necessário compreender o aprazimento secreto com o qual muitos saudaram seu fim. Uma solução rápida para a insurgência parecia infinitamente preferível a investigações lentas, prisões esparsas e julgamentos caso a caso. Estimulada pelo medo irracional de uma invasão comunista, essa impaciência ganhou. E uma vez que a Argentina aceitou a necessidade de uma solução única e absoluta, a matança pôde começar.
O fato de que as guerrilhas nunca haviam conseguido ocupar qualquer território por tempo significativo foi completamente ignorado. O delírio prevaleceu sobre a realidade. O herói revolucionário mais famoso da Argentina, Ernesto “Che” Guevara, que tinha lutado ao lado de Fidel Castro na real revolução cubana, morrera ignominiosamente alguns anos antes nas florestas da vizinha Bolívia, sem ter disparado nenhum tipo de insurreição. Mas isso não conteve o medo absurdo de que um bando de revolucionários armados poderia de alguma maneira aparecer milagrosamente em Buenos Aires e transformar a Argentina em uma segunda Cuba. A “conspiranóia” dos generais da Argentina está bem ilustrada em um relatório da embaixada americana em Buenos Aires, a partir de conversas com os militares a respeito da saída forçada de Cox em 1979:
Antissemitas rancorosos, estes indivíduos estão convencidos de que Cox é em espírito, e talvez de fato, judeu. (Ele não é.) Muitas das ameaças recentes a Cox continham implícita ou explicitamente elementos de antissemitismo. Para eles, Cox é um símbolo do liberalismo. Para estes homens, o liberalismo é a porta de entrada para o comunismo e o protetor do terrorismo. Por defender intrepidamente os direitos humanos, Cox foi condenado, aos olhos deles, como liberal.
Como os diplomatas dos EUA entenderam, a verdadeira guerra das forças armadas não era contra a quimera de uma ameaça comunista, mas contra o liberalismo. Tratava-se de um ódio tóxico não muito diferente do importado pelos nazistas que encontraram refúgio na Argentina. Quando comecei a pesquisar sobre a fuga dos nazistas para a Argentina, eu estava em busca dos modos através dos quais sua presença poderia ter inspirado diretamente os crimes da ditadura. No fim, não encontrei nenhum ponto de contato físico nem nenhuma evidência de relações diretas: não havia velhos agentes das SS que torturavam jovens prisioneiros nos porões da Argentina durante os anos 70. Cada país produz seu próprio tipo de assassinos totalitários.
O que eu descobri, contudo, foi que a presença dos nazistas na Argentina normalizou sua ideologia e enfraqueceu as defesas democráticas da sociedade contra as ideias totalitárias que eles representavam. Ao ver as bandeiras nazistas desfilando nas ruas de Charlottesville ano passado, e em Washington, D.C. este ano, percebi quão diferentes os Estados Unidos de hoje são em relação ao país em que nasci e cresci. Percebi quão avançada tal normalização já se encontra nos EUA. ∎
Revisão: Antonio Kerstenetzky e André Martins
From The New York Review of Books Daily
Copyright © 2018 by Uki Goñi
Uki Goñi mora em Buenos Aires. É jornalista, pesquisador e escritor. Já escreveu para os jornais The Guardian, The New York Times e para a revista Time. É autor de The Real Odesa: Smuggling the Nazis to Perón's Argentina (2002).